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A primeira pesquisa de intenção de voto para a prefeitura de Fortaleza, divulgada nesta quinta-feira (27), mostra o candidato Capitão Wagner (União Brasil) isolado em primeiro lugar, com 33%. A pesquisa, realizada pelo Instituto Datafolha e encomendada pelo grupo O Povo, ouviu 644 eleitores, entre os dias 24 e 26 de junho. A taxa de confiança é de 95%.
O alto índice apresentado pelo candidato mais bem colocado da direita, surpreendeu a socióloga e cientista política, Paula Vieira, pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem) da Universidade Federal do Ceará. De acordo com os dados apresentados, Wagner lidera a pesquisa em todos os segmentos de idade, escolaridade e renda familiar que compõem a amostra. A única exceção é entre os eleitores com renda familiar mensal superior a cinco salários-mínimos.
Na análise feita, a pedido do BDF Ceará, Paula avalia que a diferença de percentual entre Wagner e o atual prefeito José Sarto (PDT) é uma resposta à atual gestão. “Não é uma surpresa que ele (Wagner) saia à frente, mas o percentual me surpreendeu, principalmente em relação ao atual prefeito, Sarto, porque se espera que um candidato que tenta a reeleição tenha um pouco mais de percentual de intenção de votos. E por que eu digo isso? Porque ele já tem capital político, porque ele já tem visibilidade, porque ele já tem políticas em andamento. Então acaba que a intenção de voto funciona como uma resposta. Ele está com metade da intenção de voto do Capitão Wagner, é algo que eu considero sintomático como um retorno da população à gestão do Sarto”, analisa a pesquisadora.
José Sarto (PDT) aparece em segundo lugar na pesquisa, com 12% das intenções de voto. Na sequência, aparecem os candidatos Evandro Leitão (PT), com 9% e Célio Studart (PSD), com 8%. Já Eduardo Girão (Novo) aparece na pesquisa com 5% das intenções de voto. Considerando a margem de erro de 4 pontos para mais ou para menos, Sarto, Fernandes, Evandro e Célio estão tecnicamente empatados no segundo lugar.
Considerando o atual cenário, Paula também analisou o desempenho do candidato Evandro Leitão. A pesquisadora afirma que apesar do candidato já ter uma carreira no legislativo e ser candidato do Partido dos Trabalhadores, o maior desafio dele vai ser agregar os votos do partido, sem ser objeto de rejeição, justamente por ser o candidato do PT. “O Legislativo constrói um capital político, mas às vezes não é suficiente para logo de cara já sair como um favorito, com alta intenção de votos. Além disso, ao mesmo tempo que Evandro tem ao seu favor o Lula como presidente da República, o Elmano como Governador do estado, isso também pode pesar contra ele pela ideia de que o Partido dos Trabalhadores já está há muito tempo no poder. Eu acho que ele ainda cresce quando a campanha começar ativamente, mas vamos ver o que acontece nesse processo. Resta saber de quem ele vai ganhar esses votos, de onde vai ser a migração.”
Os candidatos Haroldo Neto (UP) e Técio Nunes (Psol) foram citados na pesquisa, mas não chegaram a 1% das intenções de voto. Brancos e nulos somam 12% e 4% disseram não saber em quem votarão. O candidato do PSTU, Zé Batista, não consta na divulgação porque sua pré-candidatura foi anunciada quando a pesquisa já estava em andamento.
Pesquisa espontânea
O Instituto Datafolha também realizou a pesquisa espontânea, quando os candidatos que estão na disputa não são apresentados aos eleitores.
Neste cenário, os candidatos André Fernandes (PL), Capitão Wagner (União Brasil) e José Sarto (PDT) são mencionados por 6% dos entrevistados. Evandro Leitão (PT) é mencionado por 3% dos entrevistados. Outros 2% disseram que votariam no PT ou no "candidato do PT".
“Olha como é interessante, quais foram os três nomes lembrados logo de cara? Wagner, Sarto e o André Fernandes, que são os três que estão mobilizando bastante já suas candidaturas, o Sarto, pelo processo de reeleição, o Capitão Wagner, pelo seu histórico de suas sucessivas tentativas de eleição para o cargo executivo e o André Fernandes, que já vem anunciando sua campanha mais enfaticamente e se colocando numa postura de oposição”, analisa Paula.
Eduardo Girão (Novo) e Célio Studart (PSD) foram citados, mas não alcançaram 1% das menções. Outros nomes somados chegam a 6%. Os que disseram não saber em quem votar totalizam 64%. Os que dizem votar branco, nulo ou em nenhum somam 8%. Os que não votam chegam a 1%.
“O que podemos observar nesse cenário, é a tendência da população a perfis com pautas que mais próximas do discurso da direita e com essa contraposição do Partido dos Trabalhadores que é o Evandro Leitão, ou qualquer candidato do PT. A disputa no âmbito nacional ainda tem repercussão no município”, ressalta a pesquisadora.
A pesquisa do Instituto Datafolha está registrada no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sob o número CE-01909/2024.
Em nota à imprensa, a Comissão Deliberativa da Comissão Nacional de Energia Nuclear informou que concedeu a Aprovação do Local para a Instalação de Beneficiamento de Urânio do Complexo de Santa Quitéria, localizado no Munícipio de Santa Quitéria, no estado do Ceará. Essa, de acordo com nota, é a primeira etapa do processo de licenciamento mínero-industrial associado ao empreendimento. A licença que autoriza o local da mina ainda não garante o início da produção. Mas o que essa licença significa? O que pensam os movimentos populares e moradores de Santa Quitéria sobre essa ação? Quais os impactos dela na vida dessas pessoas? Para responder essas e outras perguntas o Brasil de Fato conversou com Erivan Silva, da direção nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM).
O que significa essa licença?
Primeiro, essa licença é aquela velha história que a gente já conhece muito bem, a história da raposa cuidando do galinheiro. Por que eu digo isso? Porque a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) dá uma licença para a Indústrias Nucleares do Brasil (INB), que é quem detém o direito para fazer a pesquisa, ou a mineração lá da mina de Itataia, então significa dizer que sãos dois órgãos estatais, um que dá licença para o outro de uma forma, no mínimo, meia que esquisita. E segundo, é que essa licença, que nós estamos chamando de “fragmentação do processo de licenciamento do Consórcio Santa Quitéria”, em relação a mina de urânio e fosfato, é um dos caminhos que o Consórcio inventou, na verdade, para poder trilhar um caminho mais fácil.
Tem um licenciamento nuclear, que é de responsabilidade da Comissão Nacional de Energia Nuclear; tem o licenciamento geral, que aí é do Ibama, digamos assim; e tem um licenciamento que vai ser com relação à questão hídrica que seria, ou que será, na verdade, de responsabilidade do estado, inclusive a Semace que está cuidando disso. Então, nós também não temos dúvidas que é um caminho muito fácil que o Consórcio está trilhando para poder obter essas licenças com mais facilidade, porque na outra licença, em 2019, que o Ibama arquivou, ele questionou, inclusive, essa questão.
Um terceiro ponto é que essa licença significa apenas a licença para o local de beneficiamento do urânio e mais nada. Então eu queria deixar certo que é apenas uma licença para o local de beneficiamento do urânio. E essa licença, vindo da Comissão Nacional de Energia Nuclear é muito complexa. Nós tivemos duas audiências públicas já, no licenciamento que foi arquivado em 2019 pelo Ibama, e no outro processo, que o Consórcio solicitou e iniciou em 2020 e teve também audiências em 2022, apresentando o estudo de impacto ambiental, e nesses dois momentos, as pessoas que vieram ou que representaram a Comissão Nacional de Energia Nuclear foram, no mínimo, simplistas com relação ao diálogo que a gente quis fazer, na verdade, na audiência, relacionar à questão da radioatividade. Então eles querem menosprezar, na verdade, a história da radiação.
Como vocês do MAM e os moradores de Santa Quitéria e municípios vizinhos, receberam a notícia desse licenciamento?
Desde que essa matéria ganhou os jornais, as pessoas começaram dialogar com a gente, principalmente as pessoas que moram lá no território. Eu lembro que uma pessoa mandou uma mensagem para mim perguntando: “e aí, essa licença agora já é para liberar a mina?”, ou seja, as pessoas ficam “matutando” o que é que isso significa, porque as notícias que saem no jornal não saem com alguns comentários para poder, no mínimo, explicar o que é que de fato essa licença pode significar, ou não, só tentam, de fato, vender uma ideia de que a mina vai sair. A gente sempre recebe e, na verdade, a gente sempre espera sair alguma coisa nesse sentido, porque a gente sabe o que é que o estado pensa com relação a isso, tanto a federação como aqui no estado do Ceará mesmo. O Consórcio está sempre sentando com os governos, está sempre dialogando, então para nós do MAM, não é de muito espanto isso agora, o que espanta, na verdade, é o teor de informações que é repassado para a sociedade, mas na verdade, nós do MAM não esperamos o pior, mas também não duvidamos que ele possa vir e, infelizmente ele veio.
Então, assim, nós não nos surpreendemos com o que vem sempre de lá pra cá, mas o que a gente tem feito sempre é resistir também do lado de cá, ou seja, é por isso que essa informação que circula no Brasil de Fato é super importante para a gente se comunicar com o povo e dizer, “olha, se a gente fizer luta, se a gente fizer barricada, a gente pode, felizmente, vencer esse projeto ou vencer essa narrativa mentirosa que eles sempre pegam as pessoas”, infelizmente, alguns ainda acreditam.
A nota que foi divulgada para a imprensa informa que a concessão desta aprovação foi realizada após avaliação do relatório do local pelo corpo técnico da Comissão Nacional de Energia Nuclear e de diversos aspectos, incluindo geográficos, geológicos, hidrológicos, hidrogeológicos, geotécnicos, entre outros. Que relatório é esse?
Esse relatório, infelizmente, a gente não tem acesso do teor, como eles dizem aí nas matérias que saíram nesses dias. Nós não tivemos acesso, mas depois podemos solicitar. Acho difícil, inclusive eles repassarem para nós, porque, na verdade, quando se trata da história da radioatividade eles dizem que é uma matéria que é fechada, por exemplo, que tem a ver com a segurança nacional. Eles sempre têm dito isso.
Quando o Conselho Nacional de Direitos Humanos analisou o estudo de impacto ambiental, eles viram várias inconsistências no relatório, que eles chamavam também “técnico”, então, primeiro a gente precisa ver esse relatório, um especialista na área tem que, de fato, analisar se isso é seguro do ponto de vista geográfico, geológico, hidrológico, como eles estão dizendo aí.
Então é isso, os relatórios técnicos são duvidosos, a gente precisa ter acesso para poder fazer análises e a sociedade compreender o que, de fato, tem de seguro, porque eles sempre dizem que é ciência, que é seguro, etc, mas isso é muito duvidoso porque tem uma pauta política aí dentro que nós precisamos entender muito bem.
A licença que autoriza o local da mina ainda não garante o início da produção. Quais são as etapas desse licenciamento?
Então, do licenciamento nuclear isso é uma incógnita, porque eles disseram agora que está licenciado o local de implantação da indústria que vai beneficiar o urânio. Quais são as outras etapas? A gente não sabe. Porque na verdade, como eu te falei anteriormente, esses processos relacionados à questão da radioatividade, a Comissão sempre frisou e, inclusive, nas audiências públicas, que certas coisas não podem ser publicizadas porque faz parte da segurança nacional, porque é um material radioativo, etc, então o que nós queremos também é saber quais são as etapas seguintes. Agora, quando a gente fala da licença ambiental relacionada ao Ibama, a gente saberia que tem a licença prévia, a licença depois de instalação, a licença para começar a funcionar, tem esse ritual, digamos assim, mas da licença nuclear a gente não sabe. Então é uma incógnita. O que é que eles vão licenciar como um processo, não sei se talvez seja parecido com esse ritual que o Ibama faz também. Por exemplo, uma pergunta para gente: Será que vai ter uma audiência pública para eles apresentarem o licenciamento nuclear? É uma interrogação. Eu acho que deveria ter, porque as pessoas deveriam compreender o que é, que de fato significa radioatividade, ou quais são as possibilidades de ocorrer algo que possa prejudicar a população.
Em 2022, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos, o CNDH, e a Plataforma de Direitos Humanos Dhesca Brasil estiveram no Ceará com objetivo de verificar eventuais violações de direitos humanos decorrentes do projeto de exploração mineral de fosfato e urânio em Santa Quitéria. Após essa visita, o CNDH aprovou o relatório intitulado “Violações de direitos humanos na mineração de Urânio”, onde apontou violação de direitos humanos pelo empreendimento. O que mudou de lá para cá que fez esse licenciamento ser possível?
Na verdade, nós não temos dúvidas que não mudou nada, ou seja, tudo aquilo que o Conselho Nacional de Direitos Humanos relatou em um documento que tem quase duzentas páginas e que está acessível no site para quem quiser ver, está do mesmo jeito. O que a gente sabe, na verdade, é que saiu agora essa licença do local de beneficiamento. Mas o outro relatório, que o Ibama foi indicado simplesmente pelo diretor geral para refazer a gente também ainda não tem acesso, então deverá ter audiências públicas de novo para reapresentar o que eu estou dizendo com relação ao estudo de impacto ambiental que o Ibama reavaliou e impôs algumas outras pesquisas, enfim, que são variadas, mas com relação à história da licença da Comissão Nacional de Energia Nuclear, eu acho que não mudou nada.
Você pode apontar os benefícios e os malefícios dessa extração para a população?
Dos benefícios, eu vou falar o que o Consórcio fala, mas nós, sociedade, nós do MAM, nós do território, mais localmente perto ali da mineração, já não acreditamos nisso, mas, por exemplo, quando a gente escuta falar que Santa Quitéria vai receber um montante de recursos de mais de 2 bilhões de reais, a gente fica meio pasmo porque é muito dinheiro, não dá para a gente contar em cédulas, mas dá aquele impacto, aí eles falam depois que vai ter muitos empregos, depois eles dizem: “ah, vai ter também muitos impostos que vai ser pago, e o município e o estado do Ceará vão ser beneficiados com isso”. Tudo isso não passa de uma narrativa que o modelo mineral no Brasil já constituiu. O modus operandi da mineração no Brasil, para nós do MAM, é muito claro. E não somos nós que dizemos isso, a mineração no país, segundo o Ministério do Trabalho é atividade que mais adoece e mata. Então, as pessoas que porventura sonharam ou estão sonhando em trabalhar na mineração, elas já entram sabendo disso. Isso não é número que o MAM está inventando, não, é número que o Ministério do Trabalho atualiza ano a ano. A mineração é a atividade que mais adoece e mata no país. Agora, se a gente considerar que essa mineração de Santa Quitéria é radioativa, isso pode ser muito mais grave.
E as pessoas de Santa Quitéria e de municípios vizinhos, inclusive Fortaleza, não se enganem que vão ganhar muito dinheiro trabalhando na mineração, vai ganhar salário-mínimo. Quem poderá ganhar muito dinheiro, como a gente já sabe, são aquelas pessoas que têm uma qualificação, digamos assim, alta, os engenheiros, físicos, enfim, essas pessoas que deverão, talvez muitos deles, vir de fora. Então, assim, relacionado ao trabalho na mineração que eles dizem que vai dar muito dinheiro isso é informação falsa, sendo que a informação verdadeira é que o trabalho na mineração é cruel. O trabalho na mineração adoece muita gente e o trabalho na mineração também mata.
As primeiras pesquisas sobre a corrida eleitoral pelas prefeituras de 25 capitais brasileiras indicam que o eleitorado está inclinado a manter no poder um perfil muito vitorioso na história do país, que são homens, brancos e filiados a partidos do chamado centrão.
O levantamento feito pelo Brasil de Fato levou em consideração a autodeclaração racial dos pré-candidatos na última eleição que disputaram. Dessa forma, em 16 capitais o líder das pesquisas é branco, em nove delas, são pré-candidatos pardos que lideram.
Não é possível analisar o cenário eleitoral em Boa Vista (RR) porque não há pesquisas registradas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e divulgadas desde janeiro deste ano. As duas últimas, protocoladas por Cidades e Participações e Instituto Veritá, respectivamente em 7 e 9 de junho, não foram publicadas.
A deputada estadual Janad Valcari (PL), que disputará a prefeitura de Palmas (TO), é a única pré-candidatura preta que lidera a disputa nas capitais. Ela também é uma das cinco mulheres que estão à frente no pleito eleitoral, duas delas na região norte. Completam a lista: Rose Modesto (UB), em Campo Grande (MS); Maria do Rosário (PT), em Porto Alegre (RS); Mariana Carvalho (UB), em Porto Velho (RO); e Emília Correa (PL), em Aracaju (SE).
Entre os partidos, chama a atenção a predominância das legendas chamadas de "centrão". PSD (6), União Brasil (5), MDB (2) e Avante (1) lideram 14, das 26 capitais. Pré-candidaturas progressistas aparecem na frente em apenas 4 cidades: PT (2), PSOL (1) e PSB (1). À direita, o PL (4) puxa a fila, seguido por Republicanos (2) e PP (1).
O Nordeste tem os cenários com as maiores vantagens para os atuais líderes. Em três capitais, as pesquisas mostram que a corrida eleitoral poderia acabar ainda no primeiro turno se a votação fosse hoje. Em Salvador (BA), o atual prefeito Bruno Reis (UB) tem a vantagem mais confortável da região e chega a aparecer com 64% das intenções de voto.
Em Recife (PE), o prefeito João Campos (PSB) caminha para uma reeleição aparentemente tranquila, somando até 59% das intenções de voto, em alguns cenários. João Henrique Caldas, o JHC (PL), fecha a trinca dos possíveis vitoriosos ainda no primeiro turno, em Maceió (AL).
Para além deles, três pré-candidatos aparecem com mais de 40% nas pesquisas. O ex-prefeito Carlos Eduardo (PSD), em Natal (RN); o deputado estadual Fábio Novo (PT); e o prefeito Cícero Lucena (PP).
No Centro-Oeste, as disputas estão acirradas e não há como prever a fotografia final das eleições. Em Goiânia, a liderança do senador Vanderlan Cardoso (PSD) é tímida e não sai da margem de erro. Logo atrás, está a deputada federal Adriana Accorsi (PT), que está em ascensão.
No Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul, são dois pré-candidatos do União Brasil que lideram a corrida eleitoral. O deputado estadual Eduardo Botelho e a ex-deputada federal Rose Modesto parecem caminhar para o segundo turno e aguardam a consolidação de pré-candidaturas nos segundos lugares.
No Sul, a novidade é a ascensão da deputada federal Maria do Rosário (PT), que saiu da segunda para a primeira posição nas pesquisas. No levantamento de 20 de junho, o primeiro após a catástrofe ambiental na capital gaúcha, feito pela AtlasIntel, a petista, que soma 30,2%, aparece à frente do prefeito Sebastião Mello (MDB), que aparece com 24,8%.
O Republicanos tem pré-candidatos liderando duas capitais no sudeste, Vitória (ES) e Belo Horizonte (MG). O atual prefeito vitoriense, Lorenzo Pazollini é o favorito para a corrida eleitoral na cidade. Até aqui, o deputado estadual Mauro Tramonte é quem tem levado a preferência dos belo-horizontinos.
Milhares de livros censurados em bibliotecas e escolas em várias partes do país, os governos estaduais e municipais cortando os orçamentos para bibliotecas, artes e cultura junto com os já limitados recursos para a educação pública, onde também buscam proibir nas instituições versões críticas da história do país, enquanto a Louisiana acabou de ordenar a exibição dos 10 Mandamentos em cada sala de aula de suas escolas.
“Um país que desmonta a educação, as artes ou as culturas já está governado por aqueles que só têm algo a perder com a difusão do saber”, alertava Italo Calvino. O senador Bernie Sanders destacou em uma audiência que “se quatro executivos de empresas de fundos especulativos, em um momento onde temos uma desigualdade massiva de riqueza, ganham mais dinheiro que a renda total de todos os professores de pré-escola em nosso país, talvez algo esteja errado com nossas prioridades nacionais”.
Enquanto as luzes da educação e da cultura se apagam, e a narrativa nacional se perverte ainda mais com a infusão do “cristianismo nacionalista”, parece que o país caminha para uma nova era das trevas. Os elementos estão aí, incluindo frases com ecos históricos ominosos.
Nos Estados Unidos sempre esteve presente a ideia de Deus e pátria; não há evento público, desde jogos esportivos até formaturas escolares, passando por qualquer ato político, que não comece com o hino nacional e/ou alguma das piores músicas patrióticas. Quase sempre se rendem honras às forças armadas e todo discurso oficial – e cada dólar – diz que este país confia e é abençoado por Deus. E mais uma vez a direita busca sequestrar esses supostos pilares sagrados de “democracia”, “igualdade” e “direitos” para impor um regime neofascista. Neste ano eleitoral afirmam que eles e só eles podem resgatar, das garras da “esquerda radical”, os verdadeiros “valores” e “princípios” sagrados sobre os quais este país foi fundado.
Mas como disse o famoso comediante George Carlin há vários anos… “Este país foi fundado por um grupo de donos de escravos que nos disseram que todos os homens são criados iguais – certamente, com exceção dos indígenas, afro-americanos e mulheres. Acho que os americanos realmente mostram sua ignorância quando dizem que querem que seus políticos sejam honestos. Do que diabos esses cretinos estão falando? Se a honestidade de repente fosse introduzida na vida americana, colapsaria o sistema inteiro.”
Agora isso de “Deus e pátria” retorna a um país onde todo estudante teve que participar de exercícios sobre o que fazer quando uma pessoa armada entrar, onde nunca em um século se registrou tal desigualdade de riqueza, onde o orçamento militar alcançou um novo recorde, onde os migrantes – os que construíram e resgataram este país desde seus primórdios – de repente são o inimigo que, segundo Trump, estão “envenenando o sangue deste país” (frase nazista), onde já houve uma tentativa de golpe de Estado e se prepara outro (os republicanos se recusam a se comprometer a respeitar os resultados da eleição se não ganharem), e onde o cinismo chegou a tal nível que Trump promove a exibição dos 10 Mandamentos (apesar de que ele pessoalmente e seus cúmplices violaram quase todos).
Há uma cena assustadora no filme “Cabaret” – obra essencial para o momento atual – que gira em torno do surgimento do fascismo na Alemanha nos anos 30 do século passado, onde primeiro se ouve uma voz doce e inocente de um jovem cantando uma canção chamada “O amanhã me pertence”, em um parque onde famílias o escutam e logo quase todos se juntam ao coro; a câmera primeiro mostra apenas seu rosto e aos poucos desce até mostrar seu braço onde tem uma faixa com uma suástica da juventude nazista.
Há muitos indícios de que se aproxima uma era das trevas nos Estados Unidos, e agora tudo depende de se votar um movimento suficientemente unido capaz de acender as luzes.
Por alguma razão essa matéria têm o link de duas músicas!?
A conta de luz vai ficar mais cara em julho, com cobrança adicional de R$ 1,88 a cada 100 kilowatt-hora para as residências e empresas. O aumento se deve ao acionamento da bandeira amarela pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Em nota, a Eneel afirmou que a adoção da bandeira amarela, que não era acionada desde abril de 2022, se deve à previsão de chuva cerca de 50% abaixo da média e de temperaturas mais elevadas de que o normal neste inverno, levando a um maior consumo de energia, especialmente pela necessidade do uso de aparelhos para resfriar os ambientes.
“Essa é a primeira alteração na bandeira desde abril de 2022. Ao todo, foram 26 meses com bandeira verde. Com o sistema de bandeiras, o consumidor consegue fazer escolhas de consumo que contribuem para reduzir os custos de operação do sistema, reduzindo a necessidade de acionar termelétricas”, diz a nota da empresa.
O valor das bandeiras – para compensar a necessidade do acionamento de usinas termelétricas, mais caras que as hidrelétricas – aprovado pela agência em março, representa redução de 37% em relação ao valor anterior da bandeira amarela, que era de R$ 2,989/KWh.
Segundo a Aneel, o sistema de bandeiras — além da verde e da amarela há a vermelha, mais cara — estimula o próprio consumidor a controlar sua tarifa, economizando energia.
Boas notícias vindas da Alemanha
Quando se fala em usar alternativas livres e descentralizadas pelo governo não é só pela segurança e controle dos dados que são importantes mas pelo custo, imagina o quanto se economizaria usando alternativas livres em vez de proprietárias....
TÁTICA GLOBAL. No Brasil, políticos bolsonaristas ensaiam um roteiro semelhante contra quem estuda desinformação e fiscaliza plataformas. O Netlab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem sido alvo de ataques bolsonaristas nas redes. Deputados federais chegaram a convocar o grupo para uma audiência para pedir explicações após estudos do laboratório mostrarem que parlamentares espalharam mentiras sobre as enchentes no Rio Grande do Sul.
O mutirão foi determinado pelo próprio STF e, segundo projeções do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), milhares de presos podem ser beneficiados. O número de pessoas presas por tráfico que poderão procurar a Justiça para serem tratadas como usuários está entre 8.200 e 19.600, conforme as informações do Instituto.
Há 74 anos, em 27 de junho de 1950, o governo da Coreia do Sul dava início aos Massacres da Liga Bodo — sequência de atrocidades perpetradas contra civis sul-coreanos suspeitos de serem simpatizantes do comunismo ou dos ideais de esquerda. Estima-se que até 200 mil pessoas foram assassinadas durante os expurgos anticomunistas da Coreia do Sul. Durante décadas, os Estados Unidos responsabilizaram falsamente o governo da Coreia do Norte por essas mortes.
Ocupada militarmente pelo Japão desde a queda da Dinastia Qing, a Coreia foi submetida a um projeto colonial extremamente violento durante a primeira metade do século 20. Os japoneses confiscaram as terras agricultáveis, submeteram os coreanos ao trabalho forçado e criminalizaram a cultura e as tradições do país. Um código penal barbaresco foi instituído, punindo até mesmo contravenções leves com açoitamentos. Centenas de milhares de coreanas foram sequestradas e usadas como “mulheres de conforto” — prostituição forçada a serviço dos militares japoneses.
Com a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, a península da Coreia foi ocupada por tropas soviéticas e norte-americanas. A derrota dos japoneses gerou expectativa no povo coreano pela restauração de sua autonomia política, mas as potências que venceram o conflito tinham outros planos. Antecipando a polarização do mundo que marcaria a incipiente Guerra Fria, a península coreana foi dividida em duas zonas de influência distintas, delimitadas ao longo do Paralelo 38.
Na porção setentrional, foi instaurado um governo socialista integrado à esfera de influência soviética, a República Popular da Coreia, ou Coreia do Norte, sob o comando do revolucionário Kim Il Sung. Na parte meridional da península, dita Coreia do Sul, os Estados Unidos estabeleceram um governo militar, cujo comando foi entregue ao tenente-general John Hodge. O regime militar norte-americano manteve intactas as leis coloniais e a estrutura administrativa legadas da ocupação japonesa — e optou até mesmo por manter os burocratas japoneses em seus cargos, uma decisão que provocou a indignação dos sul-coreanos.
Em 1946, os camponeses da província de Daegu iniciaram uma rebelião contra a ocupação do país pelos Estados Unidos, mas foram fortemente reprimidos pelos militares norte-americanos em um massacre que deixou mais de 250 mortos e 7.500 feridos. Pouco tempo depois, os trabalhadores de Busan iniciaram uma greve geral que se espalhou por todo o país. Os norte-americanos responderam instituindo uma legislação autoritária que suprimiu o direito de greve e criminalizou as organizações sindicais e os movimentos sociais. Por fim, quando um grande levante popular eclodiu em Yeongcheon, o comando militar dos Estados Unidos decretou lei marcial e enviou tropas para massacrar a população.
Com dificuldades crescentes em controlar a Coreia do Sul, os Estados Unidos decidiram “terceirizar” a gestão para um governo-fantoche. Em julho de 1948, em uma eleição indireta, Syngman Rhee foi escolhido pela Assembleia Nacional para presidir o país.
Rhee era um coreano que vivia há décadas nos Estados Unidos e já exercera o cargo de líder do governo exilado da Coreia durante o período da ocupação japonesa. Amigo pessoal do ex-presidente Theodore Roosevelt, o sul-coreano era conhecido por seu anticomunismo exacerbado e por ter uma visão de mundo alinhada à perspectiva política norte-americana.
Syngman Rhee ficaria à frente do governo sul-coreano por 12 anos, consolidando um regime ditatorial brutal, marcado por abusos, corrupção e por uma sangrenta campanha de perseguição política contra seus opositores. Já no início de seu governo, enviou o Exército para esmagar o levante popular na Ilha de Jeju. O massacre deixou mais de 30 mil mortos — cerca de 10% da população da ilha. Pouco tempo depois, as tropas do governo conduziram o Massacre de Mungyeong, assassinando 88 civis (incluindo 32 crianças) por suspeita de serem apoiadores do comunismo.
Em 1949, Rhee criou um programa de “reeducação” para cidadãos sul-coreanos vistos como “potencialmente subversivos” — isso é, pessoas suspeitas de serem socialistas ou comunistas, militantes de partidos de esquerda, sindicalistas, grevistas, ativistas de movimentos sociais, membros do movimento estudantil, pessoas acusadas de antiamericanismo, etc. O movimento recebeu o nome de “Ligas Bodo” (oficialmente “Ligas Nacionais de Reabilitação e Orientação”, ou “Bodo Yeonmaeng”) e tinha como objetivo oficial a “reintegração dos indivíduos na sociedade coreana”.
Major Abbott / U.S. Army / Wikimedia Commons Presos políticos prestes a serem executados pelos militares sul-coreanos no campo de concentração de Taejon, em julho de 1950
Na prática, o programa das Ligas Bodo consistia no envio de pessoas consideradas “indesejáveis” ou reconhecidas como potenciais opositores do regime-sul coreano para campos de concentração. O programa era coordenado por funcionários da administração colonial japonesa. Os prisioneiros viviam em ambientes extremamente insalubres, eram submetidos ao trabalho forçado e a rotinas de abusos, torturas e maus tratos. As Ligas Bodo foram implementadas em larga escala em todo o país: em menos de um ano, mais de 300 mil pessoas já haviam sido encarceradas nas “instalações correcionais” da liga.
Em 25 de junho de 1950, respondendo a um ataque dos militares sul-coreanos à cidade de Kaesong, o exército da Coreia do Norte iniciou uma incursão ao território da Coreia do Sul. Teve início assim à Guerra da Coreia, um dos conflitos mais sangrentos do século XX, que se estendeu por três anos e deixou um saldo de até 5 milhões de mortos. Dois dias após o início da guerra, em 27 de junho de 1950, o ditador Syngman Rhee ordenou aos militares da Coreia do Sul que executassem todos os presos políticos detidos nos campos de concentração das Ligas Bodo. A justificativa era de que os prisioneiros eram potenciais colaboradores dos comunistas da Coreia do Norte.
O exército da Coreia do Sul iniciou a matança em larga escala no dia seguinte, fuzilando todos os prisioneiros nos campos de Hoengseong e Gangwon. Em seguida, avançaram rumo ao sul, cometendo uma vasta sequência de massacres em cidades como Wonju, Chungju, Sangju, Yeongju e Daejeon. Em geral, as vítimas eram assassinadas por fuzilamentos em massa e tinham seus corpos jogados e valas comuns. Nos campos localizados no litoral, os militares sul-coreanos costumavam amarrar as vítimas e atirá-las no mar para que se afogassem. Os internos dos campos não eram os únicos alvos dos expurgos. Os soldados também faziam buscas nas cidades com listas de “inimigos” e pessoas denunciadas como comunistas. Estima-se que cerca de 200 mil civis tenham sido assassinados durante os Massacres da Liga Bodo.
Oficiais das Forças Armadas dos Estados Unidos sabiam, sancionaram, assistiram e documentaram os massacres. O general Douglas MacArthur, comandante da força expedicionária norte-americana durante a Guerra da Coreia, minimizou a importância dos massacres e afirmou se tratar de “um assunto interno”. Outros oficiais norte-americanos deram aval para as chacinas. É o caso do tenente-general Rollins Emmerich, que autorizou o governo sul-coreano a assassinar os presos políticos no campo de Busan. Há registros documentais de soldados estadunidenses que permitiram e acompanharam até mesmo a execução de crianças. Soldados britânicos e australianos também testemunharam os massacres.
Malgrado o fato de que sabia a origem dos massacres, o governo dos Estados Unidos tentou responsabilizar falsamente a Coreia do Norte por essas mortes. O Pentágono chegou a financiar a produção de um filme de propaganda chamado “The Crime of Korea”, lançado em 1950, em que apresentava evidências fabricadas ligando o “regime comunista de Kim Il Sung” e os militares norte-coreanos às matanças. A narrativa revisionista foi mantida por décadas pelas autoridades norte-americanas. Não obstante, meio século após os massacres, a Comissão da Verdade e Reconciliação da Coreia do Sul investigou o ocorrido e confirmou que os responsáveis pelas mortes foram os seus militares, sob ordens de Syngman Rhee e com anuência dos oficiais norte-americanos.
No ano 2000, documentos militares do Pentágono perderam a classificação de confidencialidade, sendo abertos ao público. Os documentos divulgados — fotografias, relatórios, telegramas, etc. — comprovam que soldados dos Estados Unidos estiveram presentes durante ao menos dez massacres, fotografando e filmando os corpos das vítimas. Esse material serviu de matéria-prima para a produção do filme de propaganda de 1950, que buscava responsabilizar os norte-coreanos pelos assassinatos.
São muitos os locais especializados em cafés gourmets em Kiev, capital da Ucrânia. De manhã, eu podia observar os primeiros abrindo suas portas, jovens garçons debruçados sobre caixas de pão fresco ou enfileirando docinhos coloridos nos balcões de madeira, atrás de letreiros com nomes ilegíveis para mim. Mas eles abrem tarde; então, no nosso segundo dia na capital, 22 de maio, não tivemos tempo de tomar um bom café, pois a van já nos esperava pontualmente às 9h. Iríamos conhecer alguns vilarejos que chegaram a ser tomados pelos russos em 2022.
Vale relembrar. O plano de Vladimir Putin de tomar a Ucrânia de assalto incluía, além de abrir um grande flanco ao leste, a entrada de tropas terrestres a partir da Bielorrússia, ao norte, que em poucas semanas atravessaram a região de Chernihiv, tomaram as cidades de Chernobyl, Ivankiv, Dymer e Borodyanka e rodearam Kiev, bombardeando a capital por dias a fio. O destino, portanto, foi decidido em batalhas corpo a corpo no meio desses mesmos vilarejos que iríamos visitar. A capital não caiu, mas os municípios ao redor enfrentaram semanas de ocupação russa, com consequências nefastas e até hoje latentes. Agora, mais de dois anos depois, as lideranças locais trabalham para construir como deve ser recontada essa história, organizando de maneira cuidadosa, com enorme curadoria, o que deve e o que não deve ser mostrado ao visitante. É por isso que na coluna de hoje vou falar sobre como dois países se esforçam em construir versões distintas sobre o conflito, e como a propaganda é uma frente inevitável de qualquer guerra, ainda mais na era da pulverização da informação e da plataformização da internet.
Saindo de Kiev, terrenos que parecem baldios se revelam, na verdade, áreas repletas de trincheiras que escondem homens uniformizados; os checkpoints são frequentes; à beira da estrada, uma funerária exibe modelos de lápides, e uma delas tem o formato de um soldado portando um fuzil. Está claro que estamos em guerra. É na mesma toada que a vila de Moshchun, 30 quilômetros ao norte, se apresenta. Os muros de tijolos aparentes estão coalhados de buracos de balas, a maior parte pequenos, mas alguns têm diâmetro mais largo, arrancaram consigo pedaços da alvenaria. Aqui passaram os russos.
Trata-se de uma pequena comunidade amarronzada, sem muita pretensão de beleza. Diante de uma placa colorida que diz “eu amo Moshchun” em alfabeto cirílico, uma jovem de cabelos curtos e roupas agênero, Iryna Kabalska, de 35 anos, nos recepciona e nos apresenta o prefeito da aldeia, Vadym Zherdytsky, um senhor de ar circunspecto, cabelo rareando e grandes olhos azuis. Iryna diz que ele se tornou uma liderança depois da sua atuação nas cruas batalhas que se deram por ali entre fevereiro e março de 2022. As tropas da Rússia queriam tomar a cidade por ser tão próxima a Kiev; além disso, o rio ajudaria na travessia.
A conversa com Vadym é traduzida pela compenetrada Yulia, do Ukraine Crisis Media Center (UCMC), que anota cada detalhe do que ele diz num caderninho e depois explica tudo com uma elegância que as palavras de Vadym não possuem. Direto, endurecido pela guerra, Vadym logo no começo chama os russos de “porcos” e faz um gesto com as mãos como se fossem patas para indicar que não sabem fazer nada que exija cuidados manuais. Ele diz assim: “Um porco nunca será capaz de ensinar a seu mestre como viver”. Na sua cabeça, trata-se de uma batalha da civilização contra a barbárie.
“Eles achavam que seriam bem-vindos”, diz. “Achavam que iríamos recebê-los com pão e sal, e nós os recebemos com coquetéis-molotovs.”
Vadim participou da “defesa territorial”, grupos civis que agem junto ao Exército nos combates. Nos primeiros dias, evacuou mulheres e crianças para um resort próximo, mandou alguns moradores fazerem guarda dos armazéns onde havia comida e distribuiu os cinco parcos rifles que ganharam do Exército. Depois, seguiu buscando feridos e participando das batalhas. Conta que alguns moradores alteraram as placas para desnortear os russos; as crianças aprenderam a fazer coquetéis-molotovs nos quintais das casas. “Quem tinha armas passou a usá-las. Quando começamos a matar os soldados russos, pegamos mais armas, rifles e granadas.” Vadym refere-se às ofensivas russas como “furacões”. “De manhã a vila estava nas mãos deles, à tarde, nas nossas mãos.”
Ele pausa, aponta para baixo, agacha e pega uma lâmina de metal dentre as muitas pedrinhas no chão de terra. “É um pedaço de artilharia russa”, diz.
“Na minha família eu tenho seis filhos e dez netos. O que eu ia fazer?”, pergunta. E, em seguida, Yulia: “Vadym diz que não tem mais medo de atirar em pessoas”.
Em grupo, caminhamos até um memorial aos comandantes militares que morreram na batalha de Moshchun, onde há também algumas trincheiras, mantidas de pé por troncos grossos, cobertas de lona preta e um tecido camuflado. Estão limpas, me parecem intocadas – e fico em dúvida se de fato são trincheiras do conflito passado ou simulacro de trincheiras para benefício dos visitantes que agora começam a pipocar por aqui para ouvir histórias de guerra.
A poucos quilômetros dali está a comunidade de Irpin, que recebeu o título de “cidade heróica” por ter sido local da primeira derrota russa. A ponte sobre o rio de Irpin foi destruída pelos ucranianos para evitar a passagem das tropas em direção à capital – hoje é uma escultura de ferros retorcidos e blocos quebrados de concreto, um caminho que para no abismo; acima dele, o azul e amarelo da bandeira ucraniana. Vai virar um memorial da batalha vitoriosa. Ali perto, outra escultura a céu aberto. São pilhas e pilhas de carros alvejados pelas tropas invasoras, encontradas pelas estradas e ruas depois do recuo. Cravejados de buracos de balas, formam uma torre surrealista, marrom-cobre, enferrujando a céu aberto. Sobre elas há pinturas de grandes girassóis.
Não são apenas as imagens que importam na guerra. Os números, por exemplo, são extremamente controlados. Ninguém sabe com precisão quantas pessoas – civis e militares – morreram. O governo ucraniano publica dados sobre soldados russos que quase todo mundo acredita serem inflados: seriam mais de 500 mil “mortos e feridos”, o que obviamente não significa nada. O governo russo, por sua vez, faz o mesmo: diz que seriam meio milhão de soldados ucranianos mortos. Do mesmo modo, as baixas de cada lado são subdimensionadas. São dados impossíveis de verificar. Além disso, as palavras são fundamentais. Os soldados aqui são “defenders”, a guerra é a “full-scale invasion”, essas cidades, uma vez invadidas, foram “liberadas”. Durante nosso tour, não há um entrevistado que não agradeça por estarmos ali e que não reforce a importância de levarmos a mensagem da Ucrânia para o mundo exterior.
A visita feita a convite do UCMC e da Fundação Gabo faz parte do projeto “Explicando a Ucrânia para o Sul Global”, financiado pela Open Society Foundations. Antes do nosso grupo de jornalistas latino-americanos, Myroslava e seus colegas receberam um grupo de asiáticos e, a seguir, será a vez de jornalistas africanos. O objetivo do programa, segundo folheto que recebemos, é “explicar as peculiaridades das relações russo-ucranianas através de uma lente pós-colonial para contribuir para uma mudança de foco e uma correta compreensão dos eventos na Ucrânia”. Aquela viagem, portanto, embora não seja promovida diretamente pelo governo, também faz parte do que pode ser chamado de uma engatinhante empreitada de soft power ucraniano.
O UCMC é citado em diversos estudos acadêmicos como uma iniciativa da sociedade civil para se contrapor aos esforços de propaganda da Rússia, que aumentaram exponencialmente depois da invasão da Crimeia em 2014. Depois da revolta popular de Euromaidan, que pôs a correr o presidente pró-rússia e exigiu avanços mais rápidos em direção à integração com a União Europeia, houve uma enxurrada de campanhas de desinformação dentro e fora do país, potencializadas por exércitos de bots, influenciadores, canais e redes articuladas pelo governo russo. Como vimos aqui no Brasil, por lá centenas de fake news específicas eram construídas sob medida para reforçar as mesmas narrativas mais amplas: que a Ucrânia é dominada por nazistas e precisa ser “denazificada”; que os falantes de russo são brutalmente reprimidos pelo governo nacionalista e até enviados a campos de concentração; e que Zelensky é um ditador e não representa a vontade do povo.
Nada disso é verdade, mas a realidade nem sempre é preto e branco, pelo contrário: aos bons jornalistas, cabe encontrar as áreas cinzentas e furta-cor.
Lá nos idos de 2014, os hábitos de consumo de informações pelos ucranianos ajudou na disseminação dessas narrativas. Até meados da década passada, boa parte das fontes de informação eram russas. Segundo um estudo da Kantar TNS CMeter256, entre os dez sites mais visitados estavam o “Google” russo, Yandex, e todos os seus serviços (62%), o serviço de e-mail Mail.ru (62%), bem como as redes sociais Vkontakte (78%) e Odnoklassniki (47%). Os canais de TV russos também estavam entre os mais assistidos, em especial nas regiões mais russófonas como Donbass e Luhansk, que foram anexadas depois da invasão de 2022. Segundo um estudo realizado pela Internews, em 2014 27% dos ucranianos assistiam a canais televisivos russos.
A Rússia foi o primeiro país a entender que a guerra informacional – ou guerra “híbrida” – seria uma frente essencial na política de defesa do século 21. A partir dos anos 2000, começou a modernizar sua doutrina para abarcar uma enorme variedade de operações que poderiam amplificar seus esforços estratégico-militares. Canais foram comprados por aliados de Vladimir Putin, críticos foram presos e leis foram criadas para censurar sites oposicionistas e permitir amplo acesso aos dados dos usuários de serviços de internet (inclusive os de países vizinhos).
Há muitas pesquisas acadêmicas sobre operações de influência pró-Rússia impulsionadas por redes de bots e contas automatizadas, eu poderia passar uma semana falando sobre elas. Recomendo o livro Words and wars: Ukraine facing kremlin propaganda, que compila diferentes estudos, publicado em 2018 pela Internews. E cito um levantamento em especial. Na época da invasão, um grupo de pesquisadores da Universidade Ludwig Maximilian, em Munique, analisou quase 350 mil mensagens pró-Rússia no Twitter. Vinte por cento delas foram impulsionadas por robôs, o que indica, segundo os autores, “a presença de uma campanha de propaganda russa em grande escala nas redes sociais”.
Hoje, a estrutura de propaganda russa funciona de maneira mais ou menos pulverizada e inclui empresas, institutos, think tanks, produtoras, agências e canais oficiais, grupos de “cyber troops”, influenciadores pagos ou apenas próximos ao Kremlin. Uma das fazendas de trolls mais conhecidas foi aquela criada em 2013 pelo ex-aliado de Putin Yevgeny Prigozhin, chamada Internet Research Agency. Prigozhin, como sabemos, criou depois o grupo mercenário Wagner Group, tentou dar um golpe e acabou assassinado em um suspeito acidente de avião no ano passado.
Para contra-atacar, o governo ucraniano criou em 2014 o Ministério da Política de Informação (que depois virou Ministério da Cultura e Política da Informação). Uma das medidas mais drásticas tomadas foi a proibição das redes sociais Vkontakte e Odnoklassniki em 2017, o que gerou protestos, mas conseguiu, segundo acadêmicos, reduzir significativamente o impacto das operações russas de informação dentro do país. Na época, as relações da rede social Vkontakte com o serviço de inteligência russo já eram bem conhecidas. A rede é um análogo do Facebook criado por estudantes de São Petersburgo em 2006. Em 2013 o seu criador, Pavel Durov, vendeu as ações na empresa e deixou a Rússia, afirmando que o FSB, serviço secreto, tinha exigido a transferência dos dados dos usuários ucranianos do Vkontakte.
Hoje, a comunicação dos jovens ucranianos continua nas mãos de uma empresa fundada por russos, o Telegram, e é por ali que eles se informam imediatamente quando acontece algum lance momentâneo: de um novo alarme a informações sobre batalhas no front. Mas esse fluxo parece não incomodar o governo ucraniano, que conseguiu de maneira impressionante – digo isso a Myroslava – organizar uma maneira estruturada para disseminar informações urgentes. Cada governador de estado tem seu próprio canal de Telegram, cada canal replica informações oficiais, as narrativas são geralmente uníssonas. O que é bom e ruim, também.
Seguindo na nossa viagem, passamos pela igreja ortodoxa da cidade de Bucha, notória pelo massacre desvelado aos olhos do mundo através das lentes de fotógrafos dos principais jornais e agências de notícias globais, levados a tiracolo quando o Exército ucraniano marchou por ali no começo de abril de 2022, depois de 33 dias sob controle russo. Segundo apurações do New York Times, uma unidade do Exército russo executou dezenas de civis quando batia em retirada.
As fotos da agência Reuters, hoje, formam uma exposição permanente dentro da igreja. “Escolhemos as menos violentas”, explica o padre Andriy Halavin, cujo olhar se torna sombrio quando aponta para uma das imagens. O corpo de um homem mais velho, caído ao lado de uma bicicleta; adiante, um cãozinho. “O nome dele era Volodymyr Brovchenko, tinha cerca de 70 anos. Eu o conhecia muito bem. Esse é o seu cachorro. Ele foi encontrado perto da sua casa.”
O padre conta que foram 400 as pessoas assassinadas durante a ocupação – e que boa parte delas foi enterrada em uma vala comum que ele mesmo negociou com os russos abrir, nos fundos da igreja. Quando a ocupação terminou, os corpos foram desenterrados diante das câmeras e ganharam, finalmente, uma sepultura.
(Putin nega que tenha algo a ver com isso, e há várias teorias da conspiração na internet afirmando que quem cometeu o massacre foram os ucranianos.) Depois, vamos ao vilarejo de Borodyanka, mais especificamente a uma quadra de prédios rompidos pelas poderosas bombas planadoras, lançadas de aviões. No maior deles, de cinco andares, a parte interna dos apartamentos está exposta: há metade de uma cozinha, com mesa e cadeiras, há estantes com livros, ainda, aproximando-se do penhasco formado pelo rompimento do chão, as portas dão para o vazio. Diante desse prédio conhecemos Natalia Buzovetska, uma mulher de uns 45 anos, rosto redondo, cabelos bem negros cortados em uma franja e óculos também arredondados. “Look hot, think cold”, estampa a sua camiseta. Natalia Buzovetska é diretora do centro cultural de Borodyanka e está claramente acostumada a apresentar o cenário para jornalistas estrangeiros. Até o cachorro caramelo que vem nos acompanhar costuma aparecer nessas visitas, segundo me conta Yulia.
Natalia vai listando a invasão russa – a chegada dos tanques, as pessoas desesperadas tentando fugir pelas estradas, longas filas, os números: 8 prédios foram destruídos, 41 moradores morreram, 28 desapareceram; no total, 300 pessoas morreram em Borodyanka. Ela pausa, respira fundo quando peço que me conte sua história. Leva seu tempo. E aí sua voz muda, treme, seus olhos marejam, Yulia se emociona com ela, eu também. Quando os russos chegaram, Natalia e a família se esconderam em um porão com outras 17 pessoas, incluindo filhos e netos. No dia do bombardeio de bombas planadoras, um estrondo anunciou que o seu quintal fora atingido e seu marido tivera o crânio fraturado. “Os bombardeios aéreos vieram no dia 2 de março às 7h47 da manhã” – ela lembra com precisão. Sabe o nome do avião: “O Su-25 veio da Bielorrúsia e voava tão baixo que parecia estar caindo. Nunca vou esquecer o barulho”. Não havia hospitais, mas uma enfermeira cuidou do marido. Natalia olhava para o céu e via uma fumaça negra. “Minha neta tinha 5 anos. E minha filha me disse que não aguentaria mais, o coração se partia. Decidimos ir embora.” Voltaram no terceiro dia depois da retirada das tropas inimigas, no dia 4 de abril. “Em maio, as pessoas ainda estavam com medo de acender as luzes nos apartamentos, e havia destroços que consistiam em pedaços de roupas, móveis e edifícios destruídos por toda parte.”
“Mas estávamos felizes.”
Natalia quer nos mostrar o que parece ser a peça central desta vista desoladora: um graffiti do artista britânico Banksy, gravado na parede de uma das ruínas. Enfeita aquele cenário apocalíptico com beleza e denuncia a intenção de que tudo ali se transforme em um monumento à vitória. No desenho preto e branco, um menino vestido com roupas de judô derruba um homem bem maior e mais velho, num golpe maiúsculo. O nome da obra é “David versus Golias”.
Não há imagem que melhor capture a essência da mensagem que a Ucrânia deseja transmitir para o exterior. Essa mensagem, aliás, tem sido efetiva: no imaginário de grande parte do mundo, a Ucrânia de Zelensky já venceu.
Volodymyr Zelensky reuniu ao seu redor um grupo jovem, que trabalha diuturnamente empregando lições modernas de marketing e que, de certa forma, tem reinventado a propaganda moderna. Quem cuida da imagem e das palavras de Zelensky são alguns dos principais colaboradores da série que o alçou à fama, Servo do Povo. E Zelensky tornou-se mestre em capitalizar em cima da própria – inacreditável – trajetória.
Para quem não sabe. Zelensky, um ator e comediante já famoso, no auge dos seus 30 anos, estrelou em 2015 a série ucraniana de TV Servo do Povo, sobre um professor que se torna presidente da Ucrânia por acaso. A série era uma ácida crítica à corrupção e falta de democracia no país, ainda sob forte influência russa, e foi um sucesso, virou filme, foi parar na Netflix. A seguir, Zelensky fundou um partido com o mesmo nome da série e derrotou, em 2019, o presidente, de lavada, com 73% dos votos. Como a vida imita a arte (eu tentei evitar essa frase, mas não deu), sua eleição foi considerada um tipo de piada, bem como na série. “Nosso país gosta de populistas baratos”, diz, logo no primeiro episódio, um personagem que simboliza a elite ucraniana, um senhor de terno elegante, em um jantar privê em que discute com outros homens ricos e engravatados o futuro político do país. Pois sim.
Zelensky levou consigo, para o palácio, a equipe da sua sitcom. Dois dos responsáveis pelos seus discursos estavam envolvidos com o show. Yuri Kostyuk, roteirista profissional que era o principal escritor de o Servo do Povo, e Dmytro Lytvyn, um jornalista e analista político, que foi consultor. Segundo o jornal britânico The Observer, depois da invasão essa jovem equipe passou a viver com ele no palácio – aquele mesmo que eu visitei em maio e cujas janelas, hoje, são guarnecidas por pilhas de sacos de areia.
É por entender o poder da mobilização online que a equipe faz uma cuidadosa curadoria da imagem, da presença digital e dos discursos de Zelensky. A camiseta verde-oliva portando o brasão de armas ucraniano virou ícone e pode ser comprada em qualquer lojinha de suvenires na capital. No começo da guerra, Zelensky fazia longas lives, dando uma característica de “reality show” para o drama ucraniano. Hoje, publica vídeos mais curtos, mas ainda cheios de palavras bem escolhidas, determina a que jornalistas vai dar entrevistas de acordo com os líderes mundiais a quem quer se dirigir e orienta cuidadosamente cada discurso para o público da ocasião. Ao discursar para o Parlamento britânico, por exemplo, comparou a guerra contra a Rússia à da Grã-Bretanha contra Hitler. Falando ao Congresso dos EUA, ele comparou o bombardeio da Ucrânia a Pearl Harbor e ao 11 de setembro.
O resto do Executivo segue na mesma toada. Assim, em 7 de setembro de 2022, a vice-chanceler, Emine Dzhaparova, compareceu ao evento comemorativo dos 200 anos da independência brasileira. E começou assim seu discurso: “Independência ou morte! Assim como o imperador de vocês falou isso há 200 anos, nós dizemos isso hoje. Não há outra alternativa para a Ucrânia: ou a gente se defende ou é a morte, o fim do país”.
Desde o ano passado, o governo Zelensky entendeu a importância de conquistar mentes e corações na América Latina, região com a qual tem poucas relações. Assim, um plano estratégico de comunicação com a região foi lançado no final de maio. Tem até uma versão em português. Além de ampliar as notícias sobre a Ucrânia na imprensa local, o plano prevê formar uma rede de jornalistas e influenciadores na América Latina para “divulgar informações sobre a Ucrânia e moldar a sua imagem positiva” e tem como um dos seus objetivos “assegurar às audiências latino-americanas que a Ucrânia é capaz de resistir e vencer a guerra russo-ucraniana com o apoio adequado da comunidade internacional”.
Eu não sei se a Ucrânia pode vencer a guerra; sei que está perdendo. Sei, ainda, que está sendo usada como muro de contenção pelas potências europeias e como laboratório de aprendizagem pelo Departamento de Defesa americano. E sei que tem todo o direito de se defender de uma invasão criminosa.
Mas, talvez, o efeito mais nefasto dessa linha narrativa se dê não sobre nós, que visitamos por alguns dias o país, mas sobre os ucranianos. Escrevo isso porque, na noite daquela mesma quarta-feira, ao voltar da nossa longa jornada pelas cidades desocupadas, conheci a jovem jornalista Anna Vlasenko, uma mulher pequena, mas com olhos sérios, que me impressionou pela firmeza das palavras e independência de julgamento. Eu a conheci em meio a taças de vinho branco, numa recepção dentro da embaixada brasileira, no centro de Kiev, onde se via, da majestosa sacada, toda a bonita cidade lá embaixo. Natural de Kharkiv, Anna é correspondente de diversos canais estrangeiros e atua também como fixer nas zonas de guerra. Mas, agora, os bombardeios chegam à casa dos seus pais, a alguns quilômetros da cidade que tem mais recebido ataques. “Eu estava acostumada a ver cidades destruídas, vi muito isso em Donbass”, me disse. “Mas sempre achava que a casa dos meus pais era um lugar seguro. Sabe, você tem um lugar seguro, onde você cresceu, suas árvores favoritas.” Agora, não mais. Em março, a casa que seu pai construiu com as próprias mãos foi quase atingida por um drone – se a arma tivesse caído três metros mais perto, ele não teria sobrevivido.
Para Anna, o controle extremo da informação pelo governo de Zelensky dificulta o trabalho e, em especial, a percepção correta da situação real no teatro da guerra. Ela conta, por exemplo, que foi surpreendida pelo sucesso da iniciativa russa contra Kharkiv, assim como muitos de seus conhecidos. “Se a situação estivesse sob controle, nem teríamos essa ofensiva em Kharkiv, que é tão perto da fronteira”, diz.
Mas o pior, diz Anna, é que a propaganda ucraniana sobre a vitória certa também entrou na sua casa. Mesmo depois de quase ser atingido, seu pai está convencido a não arredar os pés da linha de frente. “Porque meu pai acredita na propaganda ucraniana, que temos um Exército muito forte e temos armas suficientes para nos proteger. E que a situação está sob controle. É uma enorme máquina de propaganda ucraniana que está funcionando para os idosos. É muito difícil conseguir entabular qualquer discussão quando ele ouve notícias todos os dias de que estamos no controle”, ela dispara, exasperada, mas comedida: “Claro que respeito a opinião dele. É a vida dele. E não posso influenciar de forma alguma o que está acontecendo.”
“Mas, dentro de mim, quero salvar a vida deles.”
A primeira coisa que eu vi quando cheguei ao Superhumans Center, uma clínica especializada em ortopedia em Lviv, no oeste da Ucrânia, foi um rapaz, vestido de short e camiseta verde-oliva, subindo lentamente a grande escadaria frontal. Não tinha a parte inferior das duas pernas, mas parecia estar adaptado à condição: segurava em uma mão a muleta, a outra apoiava no corrimão da escada, e as duas próteses, assentadas sobre tênis pretos, o levavam, inflexíveis, a subir cada degrau.
Era dia 20 de maio. O Superhumans Center é parada obrigatória para qualquer jornalista que vai a convite visitar o país. A clínica especializa-se em reabilitação de ex-soldados e vítimas de guerra que perderam braços e pernas e atende cerca de 60 pacientes a cada mês, onde recebem, sem custos, próteses modeladas ao seu corpo e acompanhamento durante a adaptação. Eu fazia parte de um “press tour” ao país a convite da Fundação Gabo e do Ukraine Crisis Media Center (UCMC). Visitamos o moderno prédio cinza no nosso segundo dia em Lviv, cidade no oeste do país, antes do “tour” ao cemitério sobre o qual falei na semana passada. Mas achei melhor deixar para contar essa história no episódio de hoje, porque o que vimos por lá me levou a outras reflexões que ultrapassam, como vocês verão, aquela visita e aquele local.
Logo na entrada, nosso grupo conheceu um rapaz baixinho, de cara redonda e cabelos lisos, bem cortados, vestindo uma camiseta da Puma, preta, colada ao corpo. Está bem assentado sobre uma prótese que substituía a perna esquerda. Gabriel Ramírez, um suboficial colombiano de 28 anos, pediu baixa do Exército do seu país para lutar na guerra do norte, em busca de um salário robusto: US$ 3 mil por mês, a promessa de uma pensão depois do término de três anos do contrato e a possibilidade de residir na Europa. Como muitos antes dele: Gabriel conta que os colombianos vêm “tanto pelo incentivo financeiro, quanto pelo gosto, e também porque a Colômbia não satisfaz as expectativas”.
“Eu sabia que podia morrer, mas tornar-me um amputado não estava nos meus planos”, diz, a fala pausada e em tom baixo.
O que lhe aconteceu foi o disparo de um tanque russo na reunião Bakhmut, no leste ucraniano. Perdeu uma das suas pernas apenas três meses depois de ter chegado ao front, antes de completar 30 anos, e assim perdeu, ainda, a profissão. Ir para a guerra, pondera, “é uma decisão muito pessoal. As consequências, cada um tem que assumir”.
Antes de chegar ali, me haviam dito que o Superhumans Center é um lugar de esperança. Mas não vejo muita esperança na expressão de Gabriel. Ele não sabe direito o que vai acontecer com sua vida; além da indenização do Exército ucraniano, esperava ganhar o direito à residência na Ucrânia, mas ainda não foi informado se sua perna perdida lhe dará um passaporte permanente para a Europa. Também lhe haviam prometido uma perna biônica que se adapta melhor à topografia montanhosa do seu país, em caso de ter de voltar, mas ele já duvida.
Em seguida, Manuel Veiga, um espanhol, bonitão, de cabelos e barba negras, nos leva a uma visita completa às instalações. Assistente social por formação, começou como voluntário para acolher refugiados ucranianos na Espanha e decidiu mudar-se para Lviv; hoje é chefe de um dos departamentos da clínica. Manuel nos guia até a sala onde ex-soldados recebem treinamento para lidar com as próteses; há médicas levando pelas mãos homens que se apoiam em barras de metal, os passos são lentos e parecem um pouco dolorosos; um deles, de camiseta polo azul, tenta chutar uma bola. Em seguida, visitamos a sala onde as próteses são formatadas, a partir de moldes de gesso feitos direto nos corpos. Logo na entrada há uma exposição sinistra de formas brancas de variados corpos partidos. Dali eles viram prótese, dali viram caminhares novos para algumas das mais de 75 mil pessoas que se estima terem perdido membros nestes dois anos e meio de guerra.
Os colombianos são o maior contingente latinoamericano. Fazem parte da Legião Internacional para a Defesa da Ucrânia, onde há batalhões inteiros de uma só nacionalidade – na unidade de Gabriel, havia 90 colombianos. Um negócio sangrento que atrai homens do mercado de mercenários. Inclusive brasileiros.
O governo ucraniano não divulga os números totais nem as nacionalidades, considerados dados estratégicos. Mas podemos inferir os países mais presentes pelos números de mortos, publicados pela primeira vez há apenas algumas semanas. Foram 56 americanos, 55 georgianos, 39 bielorrussos, 38 colombianos e 23 italianos. Em seguida, na lista de baixas, estão Reino Unido, Rússia, Polônia, Azerbaijão, Canadá, Alemanha, Suécia e Austrália.
Brasileiros, foram seis – três mortos foram reconhecidos e três estão desaparecidos. Além desses, há a informação de dois brasileiros feridos. “São aventureiros”, me diz uma fonte da chancelaria que acaba lidando menos com a vida desses homens, mas principalmente com a morte. “Quando um brasileiro morre em combate, o Ministério da Defesa nos avisa, porque a gente tem que fazer o registro de óbito, para que tenha valor legal para o Brasil. Aí a gente passa os dados de contato da família do morto, o governo crema o corpo, pega os pertences e manda para o Brasil.” Saber quem são os desaparecidos é mais complicado. Para localizar um deles, a embaixada ajudou a mediar um exame do material de DNA da mãe, cujos dados foram enviados para Kiev. Lá, eles coletam o DNA de soldados mortos e irreconhecíveis para fazer a comparação.
A única marca física desses mercenários são as bandeiras de várias nacionalidades fincadas na famosa praça Euromaidan, em Kiev. E a marca simbólica são as constantes reclamações de Vladimir Putin, que afirma haver entre os mercenários americanos – o maior contingente – forças especiais disfarçadas, operando no front.
É que o mundo todo já está metido nessa guerra.
Se as “buchas de canhão” internacionais lutam lado a lado com o Exército ucraniano, também é internacional o dinheiro que financia tanto a guerra quanto o pós-guerra. O “depois da guerra” acontece, aprendi, ao mesmo tempo que o conflito. Falo de reconstrução, mas também de um local como o Superhumans Center, que ajuda as vítimas a pensar no que serão depois que o conflito partiu suas vidas ao meio.
O centro é financiado por doações internacionais. O assessor de imprensa Andriy Ischyk me conta a respeito de uma milionária contribuição de Howard Buffett, filho do bilionário americano Warren Buffet. Outros doadores incluem o cantor Sting e a empresa britânica Virgin. A esposa do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, Olena Zelenska, faz parte do conselho supervisor da clínica.
Quem andou nos últimos anos pelas ruas de Berlim, de Londres ou Nova York viu a quantidade de bandeiras ucranianas que têm surgido na janela das casas, uma demonstração de que boa parte da opinião pública mundial apoia o engajamento internacional na guerra. A pressa em reconstruir o país é também financiada por verbas internacionais, da mesma maneira que o esforço de guerra – e, hoje, a própria economia ucraniana. Segundo a revista The Economist, o orçamento deste ano do país será de US$ 87 bilhões, mas a receita com impostos cobre apenas US$ 46 bilhões. O resto terá de vir de empréstimos e doações internacionais. Uma parte, do empréstimo de US$ 50 bilhões anunciado na reunião do G7 da última semana. A ideia é usar a renda dos ativos russos congelados em bancos europeus para amortizar o investimento.
A Ucrânia não para de pé sozinha hoje, nem parará por muito tempo; e a guerra, ao contrário do que pretendia Putin, está amalgamando ainda mais a economia ucraniana com a europeia. A Europa, sabemos, é a principal metida nesta guerra, que vê a Ucrânia como um muro de contenção contra Putin. Nos últimos meses se ampliaram os treinamentos por forças europeias, além de se ampliar o uso de armas doadas, agora em território russo.
Também foi uma demonstração da ampliação de apoio internacional o resultado da Cúpula da Paz na Suíça na semana passada, embora boa parte da imprensa tenha considerado que o resultado não foi tão bem-sucedido. Mas vejam. Estiveram representados mais de cem países, e até o Brasil, que assinou nota conjunta com a China criticando o plano, acabou impelido a mandar a embaixadora na Suíça como “observadora”. Não assinou a declaração final, assim como Arábia Saudita, México, Índia, África do Sul e Indonésia, mas 78 outros países assinaram. O texto reafirma a integridade territorial e a soberania da Ucrânia, além de pedir a devolução da usina nuclear de Zaporizhzhia, uma das maiores do mundo, atualmente ocupada pelos russos, o não uso de armas nucleares, a permissão para a exportação de grãos pelos mares de Azov e Negro e a devolução de prisioneiros de guerra e de crianças deportadas para a Rússia.
Se antes Zelensky contava com o firme apoio e interlocução da União Europeia e dos EUA, seu governo amplia o esforço de meter nesta guerra todo o mundo – fruto do trabalho dos dois burocratas que conhecemos na coluna de 4 de junho. Um dos principais avanços foi romper a dicotomia Sul-Norte global, que tem sido usada pelos russos. Afinal, assinaram a declaração países como Argentina, Cabo Verde, Peru, Chile, Nova Zelândia, Filipinas e Turquia.
Saindo do Superhumans Center, voltamos ao hotel e, à noite, partimos para Kiev num trem-cama. A estação funciona, mais uma vez, em completa normalidade, imperturbada pelos alarmes de ataques aéreos. Para os passageiros do trem não há toque de recolher, ao contrário do restante do país: das 23h às 5h, não se pode sair às ruas. Na cabine reservada para meu grupo, me alojo na cama debaixo do beliche, o colchão é confortável, mas não durmo bem: o último alarme soou às 21h, pouco depois de termos deixado Lviv. A cada chacoalhão ou parada, meus sonhos confusos vão se misturando a cenas que eu vi em tantos filmes de guerra e que não têm nada a ver com o que eu estou vendo na Ucrânia. E penso se talvez nós, que não temos experiência de conflito, sejamos os últimos a perceber que a guerra não acontece só na linha de combate, ela entra dentro das pessoas. Esse medo constante é o que acho que torna as pessoas anestesiadas. Durmo cerca de três horas e chego, exausta, na estação de Kiev, às 6h20.
Aqui na capital, a guerra está mais próxima dos olhos. Saindo do trem há muitos homens, jovens e de meia-idade, vestidos em paramentos militares: calças, camisetas e mochilas verdes. Vejo um com sua esposa, que carrega o casaco de frio para ele. Outro é trazido pelo pai. Não sei se chegam ou se vão embora. Vejo alguns andando de muletas.
Na descida da escada rolante, filmo o enorme salão e a fila de passageiros que metem suas malas numa esteira de raio X. Dois soldados descansam diante do grande painel com os nomes dos destinos. Do outro lado do saguão, uma mesa serve de ponto de alistamento voluntário às Forças Armadas, mas não há ninguém. Até que um segurança se aproxima e diz que não podemos filmar, embora Myroslava, nossa anfitriã que nos acompanha ao longo dos 2.700 quilômetros de viagem, tente argumentar que somos jornalistas com permissão do Exército. Minha colega do Estadão é forçada a apagar os vídeos do celular.
Assim como o hotel anterior em Lviv, nosso hotel em Kiev tem um ar de vazio. A recepcionista nos avisa que eles têm um abrigo antiaéreo. “Se quiser usar, basta vir aqui até a recepção e pedir”, diz. O anúncio é repetido também na placa sobre os elevadores, abaixo do restaurante, da piscina e da sauna: “bomb shelter”. Lá fora, avenidas enormes, movimentadas, gente apinhada nas calçadas e caminhando com pressa para rodar uma economia que segue, apesar de tudo. Os prédios em estilo clássico, europeu, se misturam a imponentes construções soviéticas, brutalistas. Diante do meu hotel, um centro de cultura se apossou do antigo Museu Lênin, uma barbaridade de concreto, feia e linda ao mesmo tempo. É lá que fica o UMCM.
Naquele mesmo dia, fomos conhecer o diplomata Valeriy Chaly, um senhor careca, gordinho e que impressiona tanto pela sua experiência quanto pela franqueza. É um dos fundadores do ICMC, fundado, segundo ele nos explica, em 72 horas, por ocasião da invasão da Crimeia em 2014, para “levar informações corretas ao público internacional”. Ele assessorou todos os governos ucranianos (menos o atual) desde a independência, sempre em cargos de influência. Foi vice-secretário do Conselho de Segurança e Defesa Nacional, vice-ministro das Relações Exteriores, vice-secretário de governo do ex-presidente Petro Poroshenko, que foi derrotado por Zelensky em 2019, e embaixador nos Estados Unidos. Entre os anos 1990 e meados dos anos 2010, participou de dezenas de rodadas de negociações com os russos.
“Nós tentamos evitar a guerra, nós tentamos evitar a guerra”, repete em inglês com forte sotaque, carregando nos “rs”, nas vogais graves e nos suspiros.
“É muito importante entender que esta guerra começou em 2014, com a invasão da Crimeia. Antes disso, eu estava entre o grupo de pessoas que tentou encontrar um meio-termo com a Rússia. Por exemplo, estava no grupo de negociação do Tratado de Amizade, que garantia nossa segurança, soberania e integridade territorial. Naquela época, em 1997, pensamos que havíamos alcançado um grande resultado”, disse. “Recebemos muitas críticas porque permitimos que os russos permanecessem em nosso território [com a frota do mar Negro localizada na Crimeia], mas isso nos parecia uma oportunidade de manter uma paz duradoura por décadas.”
Ouvindo Valeriy, dá para perceber quão belicosa sempre foi a relação entre a Rússia e a Ucrânia independente, e como a guerra sempre esteve no horizonte. Ele participou, depois, dos acordos de Minsk em 2014, que estabeleceram um cessar-fogo instável na região de Donbass, retirada de armas pesadas e a permissão de uma autonomia relativa ao governo separatista. “Estive no Conselho de Segurança Nacional e Defesa, com o presidente interino Turchinov e todos os políticos e ministros da Defesa, o chefe de nossa inteligência. Foi uma discussão difícil. Mas todo esse grupo decidiu que a Ucrânia deveria evitar conflito militar e a guerra”, explica.
“Tentamos encontrar uma solução diplomática.”
Quando os russos invadiram os arredores de Kiev em fevereiro de 2022, tomando os povoados de Bucha e Irpin e travando batalhas por semanas a fio em outras cidadezinhas, traziam, segundo Valeriy, uma lista de ucranianos que deveriam ser presos ou mortos. Políticos, jornalistas, intelectuais. Seu nome estava na lista.
É difícil enxergar uma saída para essa guerra, até mesmo para quem já negociou tanto. “Ninguém no mundo agora, do meu ponto de vista, sabe como isso vai terminar”, diz. “Setenta e oito por cento da Ucrânia têm parentes ou amigos que foram mortos nesta guerra. Em cada família. No próximo ano, será ainda mais. Entendemos que um cessar-fogo não vai parar a guerra. Só fará uma pausa de um ou dois anos e, depois disso, a Rússia vai atacar novamente.”
Uma coisa ele sabe: Vladimir Putin está readequando a economia russa para aguentar uma guerra prolongada – e, para Valeriy, se não houver paz neste ano, as consequências serão terríveis.
Porque a guerra é essencialmente uma operação econômica. Trata-se de uma enorme e custosa empreitada para destruir coisas – destruir gente, sim, mas também destruir casas, vigas de metal, concreto, telhados, destruir asfalto, redes de eletricidade, refinarias de petróleo e usinas, destruir tudo o que alguém com algum esmero ou ganância ou mesmo corrupção, construiu.
Destruir armas enormes do inimigo, destruir aviões, caças, sistemas de alarme antiaéreo, nomes que as pessoas aprendem a nomear e a sentir a estranha alegria quando uma delas é destruída e vira sucata. A guerra também é o ritual de celebrar a destruição de coisas caras e custosas. E o esforço de inventar novas coisas que ajudem a destruir ainda mais objetos do inimigo.
“Se você me pergunta: a guerra dá certo ou dá errado? Depende pra quem”, me explica pelo telefone, semanas depois, o professor Rodrigo Amaral, da Faculdade de Relações Internacionais da PUC-SP. “Ela dá certo para os atores do complexo industrial bélico, e os EUA são os maiores. Aliás, essa é uma grande linha argumentativa daqueles que falam das ‘endless wars‘, as oportunidades de guerras intermináveis e, com isso, potencializar o mercado da tecnologia bélica. Quando você olha pra Guerra ao Terror, isso fica explícito, a tecnologia de drones, por exemplo, é uma novidade que vai sendo desenvolvida ao longo da Guerra ao Terror.”
Nomes como F34, Mirage 2000-5, Fighters, caças F-16, Sukhoi-57, mísseis Kh-59, Kh-69, FAB-500M-62 vão entrando no vocabulário e nas conversas cotidianas das pessoas. As armas são fabricadas nos Estados Unidos, Reino Unido, França, Polônia, Alemanha, Rússia, Irã. Velhas armas soviéticas vão sendo remodeladas para novos usos e sites especializados vão se deliciando com as novidades – os ucranianos têm usado, por exemplo, um drone de nome Baba Yaga, lendária bruxa escandinava, para atacar alvos na linha de combate. Os russos, por sua vez, criaram a FAB-500, de 500 quilos, uma bomba soviética modificada pela adição de asas estabilizadoras e auxílio à navegação.
A guerra está mudando a economia da defesa.
Essa é uma guerra do século 20, lutada a pé por trincheiras e avanços por tropas formadas por gente pobre, gente cansada, gente obrigada a ir lutar, disputada rua a rua em cidades que estão nos mil quilômetros de linha de contato. Mas é também uma guerra do século 21, em que os drones, por exemplo, têm mudado o cenário – vê-se pela quantidade de anúncios de batalhões de drones que buscam voluntários nas ruas de Kiev.
No começo da nossa caminhada por Kiev, que se seguiu à conversa com o embaixador, demorei pra entender o que eram esses outdoors com imagens de soldados carregando armas, todas com um quê de propaganda de Hollywood. Depois, entendi: é preciso seduzir os jovens para virarem soldados.
Os outdoors são muitos e se viam por toda a cidade, naquele entardecer, quando fomos levados a uma caminhada turística pela guia Natasha, bastante animada, de olhos azuis bonitos e maquiagem carregada, um terninho e sapato azul com franjinhas. Fico feliz ao conhecer minha quase xará e cometo uma gafe: digo que meu nome tem origem russa, ao que ela responde, ríspida: “Russa não, eslava!”.
Passeamos pelos pontos mais conhecidos da cidade, cheia de pessoas aproveitando a tarde quente. Na praça diante do Ministério do Exterior, tanques enferrujados apreendidos dos russos viraram uma escultura permanente. Um cartaz de aluguel de patinete diz que espera o turista depois da vitória. Uma parede azul diante do cemitério virou um enorme painel de homenagem a milhares de soldados mortos desde 2014. Todos os seus rostos estão na parede. Um homem toca piano na rua, do outro lado do caminho peatonal.
Na capital, aos olhos da nossa guia, tudo é dividido entre antes e depois da guerra. “Nosso prefeito construiu a ponte porque era uma área popular e ninguém pensou que haveria guerra”, diz. O antigo Arco da Amizade, uma enorme estrutura de metal, foi construído para celebrar a irmandade entre os dois povos e hoje ostenta uma rachadura negra, intervenção feita por um artista ucraniano. “Aqui embaixo tinha uma estátua celebrando a amizade com os russos, mas, depois da invasão completa em 2022, as pessoas vieram aqui e destruíram.”
É uma das poucas ruínas que eu encontro. Depois da retirada dos russos da região de Kiev em abril de 2022, a avidez da reconstrução não deixou mais que um ou dois prédios danificados na cidade. A maior marca que ficou em Kiev é o entorno: saindo alguns quilômetros da cidade, vemos que terrenos baldios foram transformados em trincheiras ainda hoje funcionais, com estruturas quadradas de concreto escondidas debaixo de panos camuflados e grandes asteriscos de metal impedindo a entrada de carros ou tanques. Existem soldados em todas essas áreas aparentemente abandonadas. Além disso, as estradas são rigidamente controladas por checkpoints – para sairmos e entrarmos em Kiev, é preciso olhar nos olhos dos soldados e convencê-los de que não oferecemos perigo.
Mesmo assim, há algo que me inquieta. Sendo a guerra um exercício fútil de destruir coisas materiais, vejo muito menos degradação do que eu vejo diariamente na cidade de Carapicuíba, por exemplo, uma destruição causada pelo simples desenrolar da barbaridade do capitalismo cotidiano. Então, eu peço a Myroslava para vermos alguns prédios que foram bombardeados em Kiev. Ela diz para eu ficar tranquila, pois no dia seguinte iríamos à área que circunda Kiev, incluindo Bucha, onde os russos invadiram em 2022. “Bucha era um bairro próspero, um subúrbio abastado, e foi bastante afetado”, explica Myra.
E depois: “Eu sei que você quer ver coisas destruídas”, ela me diz, e a vergonha que eu sinto é indescritível. “Me dá muito orgulho ver como já reconstruíram rápido”, completa, sem perceber a monstruosidade que ela acaba de apontar em mim: o fascínio com a guerra, com os metais retorcidos e corpos despedaçados, os prédios destruídos e as imagens de filmes que vi quando crescia, e a inescapável incompreensão, até aquele momento, de que a guerra existe também no ar que ela respira. Tenho vergonha dessa curiosidade, desse fetiche da guerra, que é o que me fez aceitar participar desta viagem.
E entendo que os ucranianos, à medida que vão reconstruindo seu país com pressa, vão construindo também a história que querem que seja contada para satisfazer os olhos sedentos como os meus e os do meu leitor.
Falaremos disso na próxima semana.
Para entrar na Ucrânia, na fronteira com a Polônia, a oeste, a fila nem é tanta; levaram apenas alguns minutos para que os soldados averiguassem nossos passaportes e nossos anfitriões, ligados à organização da sociedade civil Ukraine Crisis Media Center (UCMC), explicassem o que fazíamos ali.
“Journalisti, journalisti”, ouço, do banco de trás da van que leva o grupo.
Os passaportes desaparecem, mas voltam pouco depois, o rapaz de uniforme assente com a cabeça ao entregá-los de volta.
Foi por essa fronteira que saíram 3,7 milhões de ucranianos em um mês, quando a Rússia invadiu o país. Enquanto as tropas de Vladimir Putin marchavam pelo norte, na região de Chernihiv, e pelo oeste nas regiões de Donbass e Kharkiv, as filas duravam até 12 horas e os refugiados inundaram a Europa e chocaram o mundo. Hoje, após dois anos e meio de guerra, a fronteira está fechada, os braços europeus não estão mais tão abertos, e nem a Ucrânia quer perder mais seus braços. Todos os homens entre 18 e 60 anos estão proibidos de deixar o país. Há aqueles que tentam, chegam a pagar US$ 10 mil para serem metidos em algum compartimento escondido de um carro por um “coiote”.
Por isso, do lado de lá da cerca, vejo uma fila de famílias ucranianas que querem entrar na Polônia. A demora ainda é grande. As vistorias costumam ser exaustivas. Todos têm que sair do carro, levar suas bolsas a um predinho cinzento onde elas passam por uma máquina de raios X. Os carros são examinados de cima a baixo, todas as malas são abertas ao som das ordens rudes dos soldados poloneses. Os olhos das famílias têm uma expressão de cansaço; mães seguram as filhas pelas mãos, homens idosos olham para o chão. Não sabem o que vão fazer da vida.
A Ucrânia está perdendo a guerra. Desde maio, enfrenta a maior ofensiva russa desde a invasão de 24 de fevereiro de 2022. Há bombardeios diários na segunda maior cidade do país, Kharkiv, mas também toda semana ataques de mísseis e drones a outras regiões, cujo objetivo declarado é destruir a rede elétrica nacional. As tropas russas já tomaram cerca de 20% de todo o território ucraniano.
“Sente-se que esse é o momento mais difícil”, diz Myroslava Iaremkiv, Myra, nossa anfitriã, do UCMC, que nos acompanhou durante toda a viagem. Myroslava morava no Canadá e decidiu retornar quando os russos se retiraram da região da capital, Kiev, em abril de 2022. “A ideia de nunca mais ver Kiev me aterrorizou. Prometi a mim que, se o Exército ucraniano recuperasse Kiev, eu voltaria pro país.”
Vamos conhecê-la. Vamos conhecer outros ucranianos, ativistas, políticos, vítimas de guerra. Por agora, Myroslava aponta quando o carro atravessa a cidadezinha do seu pai, onde passou grande parte da infância. Há pouca diferença na paisagem em relação à Polônia. Grandes descampados dão espaço a casarões de dois andares, marrom-claros, cercados de pinheiros e fronte gramada nos pequenos vilarejos de nomes impronunciáveis: Rava-Rus’ka, Shabel’nya, Luzhky, Zahir’ya. Ao lado dos trilhos de um trem, vacas deitam-se no gramado e mastigam o verde. Algumas propriedades parecem cultivadas, há homens e mulheres trabalhando no campo. Vejo igrejas ortodoxas, brancas e azuis, de torres abobadadas, talvez o único sinal de que não estamos em outro país do norte europeu. Nenhum sinal da guerra.
O “pior momento” é detalhado por Myra em uma lista. Não há boas notícias sobre o front há vários meses. Os ucranianos estão muito cansados depois de tanto tempo. Amigos, familiares e namorados passam a ser convocados para a linha de frente. O pior, para a maioria da população, está por vir. “Sabemos que vamos ter um blecaute no inverno pelos ataques contra a rede elétrica”, diz ela. De fato: ataques aéreos russos danificaram 73% das usinas termelétricas, e apenas 27% estão operando normalmente, segundo o primeiro-ministro, Denys Shmyhal.
“E o apoio internacional está minguando”, completa Myra. Criou-se até um nome para isso: Ukraine War Fatigue, ou fadiga da guerra da Ucrânia.
O objetivo da nossa viagem, um “press tour” com cinco jornalistas latino-americanos – dos diários Estadão, o La Nación e o Clarín da Argentina, além da apresentadora colombiana María Jimena Duzán e da Agência Pública – é óbvio: reverter essa desatenção internacional.
Mas aqui, na estrada em direção a Lviv, é difícil conciliar a enxurrada de notícias sobre a guerra com a tranquilidade que assistimos pela janela. O país é grande, um pouco maior que Minas Gerais, e estamos a mais de mil quilômetros de distância da linha de frente, claro. E a crise maior dos refugiados já é passado. Porém, há mais do que isso, há um esforço descomunal em manter a normalidade.
Chegamos no fim da tarde a Lviv, maior cidade do oeste do país, com cerca de 1 milhão de habitantes, e cuja população chegou a dobrar no início da guerra. Em todo lugar, há uma espécie de calmaria estranha, que poderia ser tomada como torpor, não fosse pela natureza aguerrida dos ucranianos, impossível de não surpreender o visitante.
Quando a Rússia invadiu, os governos do chamado “Ocidente” – termo que odeio, pois significa, de fato, Europa e EUA – acreditaram que a Ucrânia iria cair logo. Os Estados Unidos chegaram a oferecer ao presidente Volodymyr Zelensky um plano de evacuação. Ele negou: “Preciso de munição, e não de uma carona”. Os combates empreendidos pelos ucranianos, um Exército pouco experiente e velho – a idade média é de 43 anos –, acabaram por expulsar a empreitada russa ao norte, na região de Kiev, e retomar as áreas de Kharkiv e Kherson. O recuo das tropas russas levou o “norte global” – outro termo odioso – a se comprometer profundamente com a guerra. Só os Estados Unidos enviaram mais de US$ 100 bilhões para o governo de Zelensky.
Quando chegamos a Lviv, fazia algumas semanas que a Rússia começara uma operação ao nordeste, na região de Kharkiv, tentando retomar o espaço que perderam no primeiro ano da guerra. Todos sabiam que haveria uma operação de verão (as estações do ano são importantes em qualquer guerra russa), mas ninguém sabia onde. Em pouco mais de dez dias, Putin conseguiu ocupar mais 200 quilômetros quadrados, segundo o grupo Institute for the Study of War, financiado por empresas militares contratistas americanas.
“O tempo é a nossa vida”, disse Zelensky em entrevista ao jornal The Guardian mais ou menos na mesma época. Ele tentava convencer os governos europeus e americano a usar as armas doadas para atacar dentro do território russo, mas encontrava reticência pela ameaça de uma “escalada” da guerra por Vladimir Putin. Semanas depois, com a bênção dos EUA, Alemanha e França, a Ucrânia atacou pela primeira vez usando armas americanas dentro do território russo, pausando o avanço sobre a região de Kharkiv.
Tudo isso eu sei, porque leio avidamente todas as notícias que me caem às mãos nas semanas anteriores à viagem. Ler sobre a guerra é cair num poço sem fundo, tantos são os detalhes, os ângulos, os sites, TVs, blogueiros, centros acadêmicos que se dedicam a reportar esta que é uma fanfarra noticiosa global. Mas aqui, nas ruas de Lviv, a guerra parece um acontecimento distante.
É domingo de sol, o tempo começa a esquentar, e como em todas as cidades europeias aproveita-se cada segundo do tempo quente. Lviv tem o charme das cidades antigas da Europa e mereceu o título de Patrimônio Cultural da Unesco porque preserva ainda a arquitetura medieval, de quando a cidade era um importante entreposto comercial, além de construções barrocas. As lojas estão cheias de roupas requintadas, com bordados tipicamente ucranianos, e suvenires bobos como em qualquer lugar do mundo: camisetas que dizem “Slava Ukraini” – glória à Ucrânia – ou “I love Lviv”, cinzeiros de madeira, ímãs de geladeira. Porém turistas estrangeiros, hoje, não se encontram mais. Casais passeiam com roupas elegantes nas ruas de paralelepípedo em meio a cafés e restaurantes que têm suas vitrines cheias de vistosas tortas e bolos; grupos de amigas bebem grandes drinques coloridos nas calçadas; uma mãe filma a filha de cerca de 3 anos deliciando-se com um sorvete numa das mesas diante da doceria. Uma jovem, grávida, com um vestido de flores brancas, azuis e rosas, passeia de mãos dadas com o companheiro, de barba escura, bem cortada, camisa branca e tênis azul: uma lembrança de que também num país em guerra as mulheres seguem engravidando e caminham ao pôr do sol enquanto os passarinhos cantam alto.
María Jimena Duzán, jornalista colombiana experiente, que chegou a ser ameaçada pelo grupo de Pablo Escobar e perdeu uma irmã durante a guerra civil, foi o tempo todo uma excelente companheira de reflexões durante a viagem; vocês vão ouvir mais sobre ela. Enquanto estivemos na Ucrânia lembrava-se, o tempo todo, dos longos anos em que a guerra contra as Farc ditava o ritmo da vida em seu país. Via-se, também, ali na Ucrânia. “Durante a guerra nos vestíamos com as roupas mais elegantes, as mulheres usavam muita maquiagem, dançávamos o tempo todo”, diz. Ela me contou que, durante uma longa guerra que se assenta no cotidiano, a vida tem uma urgência tão grande que precisa ser exacerbada. “Reconheço muito esse clima aqui.”
Mal nos instalamos no hotel, um som corta o ar: é o alarme. Imagine uma sirene de ambulância, mas mais alta, perfurando os céus da cidade, seguida por uma voz metálica que grita algo incompreensível. Os alarmes de ataques aéreos são a mais constante lembrança de que a guerra existe e ameaça todo o território. E não vêm apenas lá de fora. Eles se repetem nos celulares de cada ucraniano, emanados de diversos aplicativos que mostram no desenho do mapa, em vermelho, as regiões que podem ser atingidas e qual é a arma da vez – drones “camicases”, mísseis teleguiados, voos de jatos russos…
Desta vez, o mapa todo reluz, avermelhado, e ninguém dá a menor bola.
“As pessoas viraram fatalistas”, diz Myra. “Eu não acho que você consegue evitar a morte”.
Depois, pergunto se ela ainda acredita que a Ucrânia tem como ganhar a guerra. Ela já não sabe dizer. “Eu sabia direitinho, podia dizer exatamente o que ia acontecer. Agora, desisti.”
É com o passar das horas que reparo que há sinais da guerra em toda parte. Mas preciso ajustar o olhar. Em uma praça movimentada, enquanto um grupo de jovens arrisca uma dancinha e outro fala animadamente segurando skates, sentados em um banco de madeira, um rapaz de uns 20 anos e uma jovem bonita namoram. Parecem felizes. Ele segura a mão dela carinhosamente, olhando-a nos olhos. Não tem a parte inferior das duas pernas, mas próteses negras onde antes havia tíbia, panturrilha, calcanhar, dedos e pés.
Em todos os parques, monumentos aos soldados mortos ocupam algum lugar, às vezes mais proeminentes, às vezes mais simplórios, mas sempre com os rostos perdidos adornados com velas, corações e a bandeira azul-amarela.
Mesmo a mil quilômetros da linha de frente, há alguns prédios que ainda mantêm barricada nas janelas – sacos de areia empilhados e cobertos de lona preta. Na elegante praça central, uma catedral tem todas as janelas cobertas por placas de alumínio. Talvez mais estranho, a praça, repleta de turistas ucranianos, tem ao centro grandes quadrados de madeira e lona branca acobertando as estátuas que antes adornavam o lugar. A imagem delas, bidimensional, está impressa nas lonas brancas, diante da bandeira ucraniana. E lê-se: “Você poderá apreciar essa estátua depois da nossa vitória”.
Em toda parte, as obras de arte urbana são amarradas e engaioladas, como se também fossem reféns dessa guerra.
Às duas e meia da manhã, soa novamente o alarme, desço ao lobby do hotel, onde encontro María Jimena. O recepcionista está visivelmente surpreso ao ver que duas mulheres estrangeiras querem descer ao abrigo antiaéreo. Ele não sabe o que fazer. Rapidamente aciona alguns dos seus grupos de Telegram – sem dúvida, o mais relevante veículo de comunicação desta guerra, o aplicativo é usado tanto por russos como por ucranianos. “É um drone vindo para essa região. É um camicase, pode destruir um apartamento ou uma casa”, diz, enquanto nos leva escada abaixo para o “abrigo” que, como em todos os locais onde estive, nada mais é que um quarto subterrâneo antes usado para outra coisa, como depósito ou administração.
Pouco depois, ele volta para avisar que o drone está indo para outra cidade, a cerca de 100 quilômetros de distância. “É uma arma de baixa tecnologia”, explica. “Don’t worry.”
Voltamos para dormir o resto da noite. O peso das noites maldormidas deve ser o primeiro sinal quando se entra em um país em conflito.
Hoje, a região de Lviv tem uma população ainda maior do que antes de 2022, pela chegada dos deslocados internos, que hoje são cerca de 350 mil, adicionados aos 2,5 milhões de moradores pré-guerra. No país, são 3,7 milhões os deslocados internos. Fui conhecer um pouco desta realidade na manhã seguinte, quando visitamos um abrigo temporário, construído para dar moradia a 1.400 deles, às margens de Lviv. O lugar parecia uma pilha de contêineres, até dois andares, margeando uma pequena floresta. O terreno era um pouco inóspito, o calor tórrido não encontrava descanso em nenhuma árvore. Algumas crianças brincavam em um modesto parquinho e algumas mulheres estendiam roupas em um grande varal, ao fundo.
Aqui, a guerra se apresenta por uma gritante ausência: não se veem quase homens.
Só há crianças, mulheres, idosos e idosas. Percebe-se que falta ali um pedaço. O administrador nos conta que todas as famílias têm que se registrar, o que facilita a convocação para a guerra. Os poucos homens em idade de conscrição que aqui chegaram foram mandados para o front. Eram 27. Hoje, só sobraram velhos.
“Meu namorado morreu na guerra”, nos conta a jovem Angelika, que chegou em maio de 2022, deixando uma lágrima correr.
Uma senhora de cabelos tingidos de ruivo, de nome Lybov, de camiseta rosa-choque escrito “Love”, conta que decidiu fugir quando as tropas avançaram sobre sua cidade, na região de Lugansk, hoje quase toda ocupada pelas tropas da Rússia. Fugiu porque tem de cuidar da filha especial – enquanto a mãe fala conosco, a menina está sentada num banco de madeira, diante de um magro jardim cultivado pelos moradores. “Havia bombardeio e tiroteio, era muito assustador. Aqui, tudo está calmo”, diz. Perdeu o contato com os vizinhos que fugiram e com os que ficaram. Discreta, ela interrompe a conversa quando se emociona, por alguns momentos. Yulia, nossa tradutora, coloca a mão sobre o seu ombro. Toda a sua família tornou-se retirante. “Só estou feliz que meus irmãos estão todos vivos”, encerra o papo.
Quando o alarme volta a soar, já no fim da tarde, estamos no meio do cemitério da cidade, e aqui a sensação de desamparo é enorme. Sem a proteção, sem os quartinhos subterrâneos que fazem as vezes de abrigos antiaéreos, em meio aos mortos ucranianos e mortos russos, às imponentes lápides soviéticas, negras e retilíneas, sinto-me mais mortal. O som é mais claro ainda por estarmos em um terreno às margens da cidade, um pouco elevado. Mas não é o alarme, e sim a área externa, onde a morte de fato nos saúda. Ao lado esquerdo do terreno, fora dos grandes muros brancos, existem mais de 400 lápides frescas, cada uma delas com uma bandeira da Ucrânia, tremulando com o vento frio, num festival horroroso de cores. Nossa guia, que fora contratada originalmente para nos apresentar o centro histórico, mas foi convencida a nos levar até ali, para diante de uma sepultura. “Esse é um amigo querido meu, Andrej, era guia como eu em Lviv. Como muitos dos nossos amigos.” Ela treme de ódio quando fala dos russos.
Na lápide, há uma foto. Andrej, de uns 30 anos, aparece de boina verde, casaco de inverno verde-musgo e um cachecol preto. Duas bandeiras ornam o seu túmulo, uma da Ucrânia e a outra, preta e vermelha – a bandeira do Exército Insurgente da Ucrânia, milícia nacionalista e fascista comandada por Stepan Bandera nos anos 1940 que se aliou aos nazistas contra o regime soviético durante a Segunda Guerra Mundial.
A organização de Bandera, OUN (Organização de Nacionalistas Ucranianos), ficou tristemente conhecida pelos pogroms que promoveu assim que os nazistas chegaram a Lviv. Durante três dias, execuções em praça pública, linchamentos, mulheres sendo obrigadas a marchar de joelhos, ou arrastadas, nuas, nas ruas daquela cidade que me parecia tão pacata. Estima-se que apenas em três dias a milícia matou cerca de 4 mil judeus (os registros que se encontram na internet são horrendos). Depois da guerra, Bandera colaborou com a inteligência americana e com a alemã ocidental. Foi morto por um agente da KGB em Munique, em 1959.
Em Lviv, região que mais tem enviado pessoas para o front – segundo nos contou com orgulho o diretor da região militar, Maksym Kozytskyi – as bandeiras da organização fascista têm ganhado espaço e reconhecimento à medida que a Ucrânia, e também a Rússia, reencontram seu passado sombrio para convencer seus homens a partir para o front de guerra. Depois de ter sido controlada pelos nazistas durante alguns anos, no pós-Segunda-Guerra a Ucrânia voltou a ser anexada pela União Soviética, tendo conquistado a independência apenas em 1991.
A Ucrânia, como Estado-nação, é 12 anos mais jovem do que eu.
“Não há absolutamente nada de bom em uma guerra”, comenta Jimena quando caminhamos pelo cemitério. Espanta-lhe a deferência com que os ucranianos defendem seu Exército. “A guerra corrompe tudo.” É claro que a ideia de que a tomada ilegal de território ucraniano tem o propósito de “desnazificar” ou “libertar” o país, como alega Vladimir Putin, é estapafúrdia. Mas também é verdade que, com o arrastar-se do conflito, símbolos antes considerados tabus podem ser vistos não apenas nos túmulos, mas nas lojinhas de suvenires, nos mercados populares. Acirram o nacionalismo e sentimento antirruso, criam uma renovada identidade ultranacionalista e supremacista. Ajudam a empurrar jovens para o front e a morte quase certa. Encontrei (e comprei), em uma feirinha de artesanato, ímãs de geladeira com a cara de Bandera estampada diante da bandeira rubro-negra, a mesma que homenageia a lápide do guia Andrej do lado de fora do cemitério de Lviv.
O alarme volta a soar: é o fim do período de alerta. Descemos o morro sobre o qual está o cemitério, já ao pôr do sol. Escurece. Nossa guia brinca que nunca antes levou um grupo de visitantes ao cemitério àquela hora. Brinca que podemos acordar os mortos, mas a brincadeira não tem graça.
O brasileiro Fernando Andrés Sabag Montiel, de 37 anos, falou abertamente durante três horas no primeiro dia do julgamento pela tentativa de homicídio, revelando detalhes, sentimentos e motivações que o levaram a tentar matar a ex-presidente Cristina Kirchner num atentado, então classificado como “um ataque à democracia” que comoveu o país.
No primeiro dia de julgamento, o brasileiro Fernando Sabag Montiel assumiu toda a culpa pelo atentado, isentando os outros dois acusados, a então namorada Brenda Uliarte e o colega de trabalho Nicolás Carrizo, e definindo-se como “um zé ninguém que tentou fazer com as próprias mãos o que a Justiça não fez”.
Fernando disse que é “apolítico” e que “a motivação foi pessoal”. Explicou que “queria fazer um favor à sociedade” porque “Cristina Kirchner é uma ladra que destruiu a economia do país” e disse ser consciente de que, se tivesse conseguido, “teria provocado uma desestabilização no país, uma temida guerra civil”.
“A clara intenção era matar Cristina Kirchner”, admitiu sem rodeios. “Eu queria matá-la e Brenda Uliarte queria que ela morresse”, esclareceu numa tentativa de inocentar a ex-companheira, agora com 24 anos.
Fernando Montiel disse ser “o resultado de uma Justiça que não funciona” ou, pelo menos, “parte da Justiça” que não condenava Cristina Kirchner por corrupção.
“Acredito que tenha sido um ato de justiça. Não foi um ato no qual eu procurei me favorecer economicamente. Tem uma conotação mais profunda, mais ética e mais comprometida com o bem social”, explicou, acrescentando que “é por culpa da Justiça que Cristina Kirchner está livre, que as coisas no país não sejam feitas corretamente”.
“Eu sou o resultado ou o fator de muitas falhas da Justiça porque uma parte da Justiça argentina não funciona. Pago o preço daquilo que outros não fizeram”, afirmou.
“É preciso vir um ‘zé ninguém’ para lhes dizer que parem”, concluiu sobre si mesmo.
Justiça pelas próprias mãos
O brasileiro negou ter ideologia, definindo-se como “apolítico”. “As bases ou o incentivo pelos quais cometi o atentado não foram por ter uma posição nas antípodas do ‘kirchnerismo’ nem por estar num setor contrário”, garantiu.
Sobre a sua motivação pessoal, descreveu que “foram questões de incomodidade com o estabelecido”.
“Sobre a pessoa de Cristina Kirchner, não gosto. É corrupta, rouba, provoca danos na sociedade”, classificou, dando um exemplo pessoal: “Eu me senti humilhado. Passei de ser uma pessoa com uma boa situação econômica a um vendedor de algodão-doce”, comparou.
Gangue do algodão-doce
Quanto à namorada, Brenda Uliarte, quem o acompanhou até o local do atentado, Fernando Montiel disse: “Ela queria mais ser uma espectadora do que uma partícipe”.
“Ela escutou as minhas ideias, o que eu queria fazer e até onde queria chegar. Ela dividiu comigo, mas ela não tinha tanta certeza do que eu poderia fazer. Talvez ela tenha encarado como uma brincadeira ou como uma mostra de valentia; não como algo sério”, interpretou.
“Mas não houve um freio, dizendo que não fizéssemos porque poderíamos ser presos. Teria sido bom se ela me tivesse freado”, refletiu.
Quanto ao terceiro acusado, Nicolás Carrizo, Fernando Montiel descartou o seu envolvimento. “Eu jamais lhe contei o que ia fazer. Só tinha uma relação de trabalho”, separou.
O tiro que não saiu
No dia primeiro de setembro de 2022, por volta das 21 horas, a ex-presidente Cristina Kirchner (2007-2015), voltava para casa. Milhares de simpatizantes a esperavam para expressar apoio à então vice-presidente (2019-2023) num momento no qual ela era julgada por corrupção.
Cristina Kirchner foi condenada em primeira instância três meses depois, mas naquele dia sofreu um atentado.
Fernando Sapag Montiel ficou a menos de um metro do alvo (“Foram cerca de 30 centímetros”, disse), apontou uma arma para a cabeça de Cristina Kirchner e apertou o gatilho, mas o tiro não saiu. No nervosismo, Fernando se esqueceu de carregar a arma.
“Foi um ato contra a minha vontade porque na hora senti que não queria fazer aquilo, mas tinha de fazer”, descreveu no primeiro dia de julgamento.
Quase dois anos depois, começou o julgamento dos três acusados de participarem do atentado.
Brenda Uliarte é acusada de ser coautora e Nicolás Carrizo, coordenador do atentado.
Os três tinham empreendido um negócio de venda de algodão-doce que servia como fachada para se aproximar de Cristina Kirchner. Nicolás era o dono da máquina de fazer o doce. Fernando e Brenda vendiam. Ganharam o título de “a gangue do algodão-doce”.
Brenda era namorada de Fernando, que trabalhava também como motorista.
Fernando nasceu em São Paulo em 13 de janeiro de 1987, mas mal fala português. É filho de uma argentina e de um chileno. Em 2021, o pai foi expulso do Brasil após repetidos roubos.
Quando Fernando tinha seis anos, mãe e filho vieram para Buenos Aires.
Cristina Kirchner vê motivações ideológicas Pelos próximos meses, todas as quartas-feiras, 277 testemunhas serão ouvidas, inclusive a própria Cristina Kirchner.
Não há dúvidas quanto à culpa de Fernando, mas a Justiça quer esclarecer a motivação e o papel dos demais acusados. Para a Promotoria, os acusados não pertenciam a nenhuma organização política.
Mas a ex-presidente Cristina Kirchner defende que havia por trás um esquema motivado e financiado por forças da direita.
Na polarização argentina, quem é contra Cristina Kirchner, acha que ela se faz de vítima de uma perseguição política. Quem é a favor, acredita numa conspiração ideológica que tentou matar a ex-presidente.
Fernando disse que se tivesse conseguido matar a ex-presidente, “teria provocado uma desestabilização no país, uma temida guerra civil”.
Perguntado se estava arrependido, o brasileiro respondeu: “Eu me sentiria mais arrependido se tivesse acontecido, talvez”.
A sentença só deve sair dentro de seis meses a um ano.
O governo boliviano anunciou nesta quinta-feira (27) a detenção de 17 pessoas, incluindo militares ativos e reformados, além de vários civis, pela suposta ligação com o fracassado golpe de Estado contra o presidente de esquerda Luis Arce.
"Efetuamos a apreensão de um total de 17 pessoas por tentarem consumar um golpe de Estado", declarou em coletiva de imprensa o ministro de Governo (Interior), Eduardo del Castillo.
Haviam sido presos até quarta-feira (26) o general Juan José Zúñiga e o vice-almirante Juan Arnez, ex-comandantes do Exército e da Marinha, respectivamente, acusados de liderar a tentativa de golpe. Nesta quinta, o governo apresentou os outros 15 capturados, que estavam algemados, vestiam coletes à prova de balas e eram vigiados por efetivos policiais.
"Isso [tentativa de golpe] estaria planejado desde maio", disse o ministro, informando que outros três suspeitos estão sendo procurados. Segundo del Castillo, o plano para derrubar Arce "foi liderado" por Zúñiga e Arnez.
Ambos os oficiais foram acusados de insurreição armada e terrorismo, crimes pelos quais podem ser condenados a penas de até 20 anos, segundo o Ministério Público.
"Temos informações suficientes (...) graças ao trabalho que está sendo realizado pelo Ministério Público e pela polícia para desmantelar essa 'rede antidemocrática', que foi formada por um pequeno grupo de soldados que tiveram a audácia de tentar tomar o poder, que reside no povo, pela força com metralhadoras e veículos", disse o ministro.
Entenda a tentativa de golpe
O ex-comandante do Exército boliviano Juan José Zúñiga, principal liderança da tentativa de golpe contra o presidente da Bolívia, Luís Arce, foi preso na noite de quarta-feira (26) na capital do país.
Na quarta, Zúñiga mobilizou um grupo de soldados encapuzados e tomou a Plaza Murillo, o centro do poder político da Bolívia, onde funcionam os órgãos Executivo e Legislativo, com tanques e soldados com armas de grosso calibre. Como resultado disso, pelo menos 12 pessoas foram feridas, por balas de borracha e munição letal, como parte da violência exercida pelos militares.
A quartelada teve início na manhã desta quarta quando Zúñiga se apresentou para o posto de comandante do Exército apesar de ter sido destituído por Arce na noite de terça-feira (25). A decisão do presidente aconteceu após o militar de alta patente se opor publicamente à candidatura do ex-presidente Evo Morales para disputar as eleições do ano que vem. Em declarações nesta semana ele chegou a dizer que Morales "não pode mais ser presidente deste país" e afirmou que estaria disposto a oferecer a vida "pela defesa e unidade da pátria".
Por volta das 14h, Zúñiga se dirigiu à Praça Murillo, em La Paz, onde liderou uma tentativa de golpe em um tanque do Exército acompanhado de outros militares e 12 tanques.
Os golpistas tentaram invadir a Casa Grande del Pueblo, uma das sedes do governo boliviano, quando houve um enfrentamento verbal com o presidente Arce, que ordenou o recuo do general. No momento em que população boliviana se dirigia à Praça Murillo em defesa da democracia, o soldado entrou em seu veículo blindado e deixou o local.
O presidente boliviano prestou então o juramento de posse do novo alto comando militar. Após a partida de Zúñiga, a praça se tornou palco de comemorações populares e um discurso de Arce junto de seu gabinete. O presidente agradeceu às organizações e disse que os responsáveis devem responder judicialmente pelo golpe frustrado o mais rápido possível.