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Notícias

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Comunidade para publicação de notícias brasileiras ou mundiais

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  6. Notícias de jornais não confiáveis não são permitidas; Veja lista aqui;
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A primeira coisa que eu vi quando cheguei ao Superhumans Center, uma clínica especializada em ortopedia em Lviv, no oeste da Ucrânia, foi um rapaz, vestido de short e camiseta verde-oliva, subindo lentamente a grande escadaria frontal. Não tinha a parte inferior das duas pernas, mas parecia estar adaptado à condição: segurava em uma mão a muleta, a outra apoiava no corrimão da escada, e as duas próteses, assentadas sobre tênis pretos, o levavam, inflexíveis, a subir cada degrau.

Era dia 20 de maio. O Superhumans Center é parada obrigatória para qualquer jornalista que vai a convite visitar o país. A clínica especializa-se em reabilitação de ex-soldados e vítimas de guerra que perderam braços e pernas e atende cerca de 60 pacientes a cada mês, onde recebem, sem custos, próteses modeladas ao seu corpo e acompanhamento durante a adaptação. Eu fazia parte de um “press tour” ao país a convite da Fundação Gabo e do Ukraine Crisis Media Center (UCMC). Visitamos o moderno prédio cinza no nosso segundo dia em Lviv, cidade no oeste do país, antes do “tour” ao cemitério sobre o qual falei na semana passada. Mas achei melhor deixar para contar essa história no episódio de hoje, porque o que vimos por lá me levou a outras reflexões que ultrapassam, como vocês verão, aquela visita e aquele local.

Logo na entrada, nosso grupo conheceu um rapaz baixinho, de cara redonda e cabelos lisos, bem cortados, vestindo uma camiseta da Puma, preta, colada ao corpo. Está bem assentado sobre uma prótese que substituía a perna esquerda. Gabriel Ramírez, um suboficial colombiano de 28 anos, pediu baixa do Exército do seu país para lutar na guerra do norte, em busca de um salário robusto: US$ 3 mil por mês, a promessa de uma pensão depois do término de três anos do contrato e a possibilidade de residir na Europa. Como muitos antes dele: Gabriel conta que os colombianos vêm “tanto pelo incentivo financeiro, quanto pelo gosto, e também porque a Colômbia não satisfaz as expectativas”.

“Eu sabia que podia morrer, mas tornar-me um amputado não estava nos meus planos”, diz, a fala pausada e em tom baixo.

O que lhe aconteceu foi o disparo de um tanque russo na reunião Bakhmut, no leste ucraniano. Perdeu uma das suas pernas apenas três meses depois de ter chegado ao front, antes de completar 30 anos, e assim perdeu, ainda, a profissão. Ir para a guerra, pondera, “é uma decisão muito pessoal. As consequências, cada um tem que assumir”.

Antes de chegar ali, me haviam dito que o Superhumans Center é um lugar de esperança. Mas não vejo muita esperança na expressão de Gabriel. Ele não sabe direito o que vai acontecer com sua vida; além da indenização do Exército ucraniano, esperava ganhar o direito à residência na Ucrânia, mas ainda não foi informado se sua perna perdida lhe dará um passaporte permanente para a Europa. Também lhe haviam prometido uma perna biônica que se adapta melhor à topografia montanhosa do seu país, em caso de ter de voltar, mas ele já duvida.

Em seguida, Manuel Veiga, um espanhol, bonitão, de cabelos e barba negras, nos leva a uma visita completa às instalações. Assistente social por formação, começou como voluntário para acolher refugiados ucranianos na Espanha e decidiu mudar-se para Lviv; hoje é chefe de um dos departamentos da clínica. Manuel nos guia até a sala onde ex-soldados recebem treinamento para lidar com as próteses; há médicas levando pelas mãos homens que se apoiam em barras de metal, os passos são lentos e parecem um pouco dolorosos; um deles, de camiseta polo azul, tenta chutar uma bola. Em seguida, visitamos a sala onde as próteses são formatadas, a partir de moldes de gesso feitos direto nos corpos. Logo na entrada há uma exposição sinistra de formas brancas de variados corpos partidos. Dali eles viram prótese, dali viram caminhares novos para algumas das mais de 75 mil pessoas que se estima terem perdido membros nestes dois anos e meio de guerra.

Os colombianos são o maior contingente latinoamericano. Fazem parte da Legião Internacional para a Defesa da Ucrânia, onde há batalhões inteiros de uma só nacionalidade – na unidade de Gabriel, havia 90 colombianos. Um negócio sangrento que atrai homens do mercado de mercenários. Inclusive brasileiros.

O governo ucraniano não divulga os números totais nem as nacionalidades, considerados dados estratégicos. Mas podemos inferir os países mais presentes pelos números de mortos, publicados pela primeira vez há apenas algumas semanas. Foram 56 americanos, 55 georgianos, 39 bielorrussos, 38 colombianos e 23 italianos. Em seguida, na lista de baixas, estão Reino Unido, Rússia, Polônia, Azerbaijão, Canadá, Alemanha, Suécia e Austrália.

Brasileiros, foram seis – três mortos foram reconhecidos e três estão desaparecidos. Além desses, há a informação de dois brasileiros feridos. “São aventureiros”, me diz uma fonte da chancelaria que acaba lidando menos com a vida desses homens, mas principalmente com a morte. “Quando um brasileiro morre em combate, o Ministério da Defesa nos avisa, porque a gente tem que fazer o registro de óbito, para que tenha valor legal para o Brasil. Aí a gente passa os dados de contato da família do morto, o governo crema o corpo, pega os pertences e manda para o Brasil.” Saber quem são os desaparecidos é mais complicado. Para localizar um deles, a embaixada ajudou a mediar um exame do material de DNA da mãe, cujos dados foram enviados para Kiev. Lá, eles coletam o DNA de soldados mortos e irreconhecíveis para fazer a comparação.

A única marca física desses mercenários são as bandeiras de várias nacionalidades fincadas na famosa praça Euromaidan, em Kiev. E a marca simbólica são as constantes reclamações de Vladimir Putin, que afirma haver entre os mercenários americanos – o maior contingente – forças especiais disfarçadas, operando no front.

É que o mundo todo já está metido nessa guerra.

Se as “buchas de canhão” internacionais lutam lado a lado com o Exército ucraniano, também é internacional o dinheiro que financia tanto a guerra quanto o pós-guerra. O “depois da guerra” acontece, aprendi, ao mesmo tempo que o conflito. Falo de reconstrução, mas também de um local como o Superhumans Center, que ajuda as vítimas a pensar no que serão depois que o conflito partiu suas vidas ao meio.

O centro é financiado por doações internacionais. O assessor de imprensa Andriy Ischyk me conta a respeito de uma milionária contribuição de Howard Buffett, filho do bilionário americano Warren Buffet. Outros doadores incluem o cantor Sting e a empresa britânica Virgin. A esposa do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, Olena Zelenska, faz parte do conselho supervisor da clínica.

Quem andou nos últimos anos pelas ruas de Berlim, de Londres ou Nova York viu a quantidade de bandeiras ucranianas que têm surgido na janela das casas, uma demonstração de que boa parte da opinião pública mundial apoia o engajamento internacional na guerra. A pressa em reconstruir o país é também financiada por verbas internacionais, da mesma maneira que o esforço de guerra – e, hoje, a própria economia ucraniana. Segundo a revista The Economist, o orçamento deste ano do país será de US$ 87 bilhões, mas a receita com impostos cobre apenas US$ 46 bilhões. O resto terá de vir de empréstimos e doações internacionais. Uma parte, do empréstimo de US$ 50 bilhões anunciado na reunião do G7 da última semana. A ideia é usar a renda dos ativos russos congelados em bancos europeus para amortizar o investimento.

A Ucrânia não para de pé sozinha hoje, nem parará por muito tempo; e a guerra, ao contrário do que pretendia Putin, está amalgamando ainda mais a economia ucraniana com a europeia. A Europa, sabemos, é a principal metida nesta guerra, que vê a Ucrânia como um muro de contenção contra Putin. Nos últimos meses se ampliaram os treinamentos por forças europeias, além de se ampliar o uso de armas doadas, agora em território russo.

Também foi uma demonstração da ampliação de apoio internacional o resultado da Cúpula da Paz na Suíça na semana passada, embora boa parte da imprensa tenha considerado que o resultado não foi tão bem-sucedido. Mas vejam. Estiveram representados mais de cem países, e até o Brasil, que assinou nota conjunta com a China criticando o plano, acabou impelido a mandar a embaixadora na Suíça como “observadora”. Não assinou a declaração final, assim como Arábia Saudita, México, Índia, África do Sul e Indonésia, mas 78 outros países assinaram. O texto reafirma a integridade territorial e a soberania da Ucrânia, além de pedir a devolução da usina nuclear de Zaporizhzhia, uma das maiores do mundo, atualmente ocupada pelos russos, o não uso de armas nucleares, a permissão para a exportação de grãos pelos mares de Azov e Negro e a devolução de prisioneiros de guerra e de crianças deportadas para a Rússia.

Se antes Zelensky contava com o firme apoio e interlocução da União Europeia e dos EUA, seu governo amplia o esforço de meter nesta guerra todo o mundo – fruto do trabalho dos dois burocratas que conhecemos na coluna de 4 de junho. Um dos principais avanços foi romper a dicotomia Sul-Norte global, que tem sido usada pelos russos. Afinal, assinaram a declaração países como Argentina, Cabo Verde, Peru, Chile, Nova Zelândia, Filipinas e Turquia.

Saindo do Superhumans Center, voltamos ao hotel e, à noite, partimos para Kiev num trem-cama. A estação funciona, mais uma vez, em completa normalidade, imperturbada pelos alarmes de ataques aéreos. Para os passageiros do trem não há toque de recolher, ao contrário do restante do país: das 23h às 5h, não se pode sair às ruas. Na cabine reservada para meu grupo, me alojo na cama debaixo do beliche, o colchão é confortável, mas não durmo bem: o último alarme soou às 21h, pouco depois de termos deixado Lviv. A cada chacoalhão ou parada, meus sonhos confusos vão se misturando a cenas que eu vi em tantos filmes de guerra e que não têm nada a ver com o que eu estou vendo na Ucrânia. E penso se talvez nós, que não temos experiência de conflito, sejamos os últimos a perceber que a guerra não acontece só na linha de combate, ela entra dentro das pessoas. Esse medo constante é o que acho que torna as pessoas anestesiadas. Durmo cerca de três horas e chego, exausta, na estação de Kiev, às 6h20.

Aqui na capital, a guerra está mais próxima dos olhos. Saindo do trem há muitos homens, jovens e de meia-idade, vestidos em paramentos militares: calças, camisetas e mochilas verdes. Vejo um com sua esposa, que carrega o casaco de frio para ele. Outro é trazido pelo pai. Não sei se chegam ou se vão embora. Vejo alguns andando de muletas.

Na descida da escada rolante, filmo o enorme salão e a fila de passageiros que metem suas malas numa esteira de raio X. Dois soldados descansam diante do grande painel com os nomes dos destinos. Do outro lado do saguão, uma mesa serve de ponto de alistamento voluntário às Forças Armadas, mas não há ninguém. Até que um segurança se aproxima e diz que não podemos filmar, embora Myroslava, nossa anfitriã que nos acompanha ao longo dos 2.700 quilômetros de viagem, tente argumentar que somos jornalistas com permissão do Exército. Minha colega do Estadão é forçada a apagar os vídeos do celular.

Assim como o hotel anterior em Lviv, nosso hotel em Kiev tem um ar de vazio. A recepcionista nos avisa que eles têm um abrigo antiaéreo. “Se quiser usar, basta vir aqui até a recepção e pedir”, diz. O anúncio é repetido também na placa sobre os elevadores, abaixo do restaurante, da piscina e da sauna: “bomb shelter”. Lá fora, avenidas enormes, movimentadas, gente apinhada nas calçadas e caminhando com pressa para rodar uma economia que segue, apesar de tudo. Os prédios em estilo clássico, europeu, se misturam a imponentes construções soviéticas, brutalistas. Diante do meu hotel, um centro de cultura se apossou do antigo Museu Lênin, uma barbaridade de concreto, feia e linda ao mesmo tempo. É lá que fica o UMCM.

Naquele mesmo dia, fomos conhecer o diplomata Valeriy Chaly, um senhor careca, gordinho e que impressiona tanto pela sua experiência quanto pela franqueza. É um dos fundadores do ICMC, fundado, segundo ele nos explica, em 72 horas, por ocasião da invasão da Crimeia em 2014, para “levar informações corretas ao público internacional”. Ele assessorou todos os governos ucranianos (menos o atual) desde a independência, sempre em cargos de influência. Foi vice-secretário do Conselho de Segurança e Defesa Nacional, vice-ministro das Relações Exteriores, vice-secretário de governo do ex-presidente Petro Poroshenko, que foi derrotado por Zelensky em 2019, e embaixador nos Estados Unidos. Entre os anos 1990 e meados dos anos 2010, participou de dezenas de rodadas de negociações com os russos.

“Nós tentamos evitar a guerra, nós tentamos evitar a guerra”, repete em inglês com forte sotaque, carregando nos “rs”, nas vogais graves e nos suspiros.

“É muito importante entender que esta guerra começou em 2014, com a invasão da Crimeia. Antes disso, eu estava entre o grupo de pessoas que tentou encontrar um meio-termo com a Rússia. Por exemplo, estava no grupo de negociação do Tratado de Amizade, que garantia nossa segurança, soberania e integridade territorial. Naquela época, em 1997, pensamos que havíamos alcançado um grande resultado”, disse. “Recebemos muitas críticas porque permitimos que os russos permanecessem em nosso território [com a frota do mar Negro localizada na Crimeia], mas isso nos parecia uma oportunidade de manter uma paz duradoura por décadas.”

Ouvindo Valeriy, dá para perceber quão belicosa sempre foi a relação entre a Rússia e a Ucrânia independente, e como a guerra sempre esteve no horizonte. Ele participou, depois, dos acordos de Minsk em 2014, que estabeleceram um cessar-fogo instável na região de Donbass, retirada de armas pesadas e a permissão de uma autonomia relativa ao governo separatista. “Estive no Conselho de Segurança Nacional e Defesa, com o presidente interino Turchinov e todos os políticos e ministros da Defesa, o chefe de nossa inteligência. Foi uma discussão difícil. Mas todo esse grupo decidiu que a Ucrânia deveria evitar conflito militar e a guerra”, explica.

“Tentamos encontrar uma solução diplomática.”

Quando os russos invadiram os arredores de Kiev em fevereiro de 2022, tomando os povoados de Bucha e Irpin e travando batalhas por semanas a fio em outras cidadezinhas, traziam, segundo Valeriy, uma lista de ucranianos que deveriam ser presos ou mortos. Políticos, jornalistas, intelectuais. Seu nome estava na lista.

É difícil enxergar uma saída para essa guerra, até mesmo para quem já negociou tanto. “Ninguém no mundo agora, do meu ponto de vista, sabe como isso vai terminar”, diz. “Setenta e oito por cento da Ucrânia têm parentes ou amigos que foram mortos nesta guerra. Em cada família. No próximo ano, será ainda mais. Entendemos que um cessar-fogo não vai parar a guerra. Só fará uma pausa de um ou dois anos e, depois disso, a Rússia vai atacar novamente.”

Uma coisa ele sabe: Vladimir Putin está readequando a economia russa para aguentar uma guerra prolongada – e, para Valeriy, se não houver paz neste ano, as consequências serão terríveis.

Porque a guerra é essencialmente uma operação econômica. Trata-se de uma enorme e custosa empreitada para destruir coisas – destruir gente, sim, mas também destruir casas, vigas de metal, concreto, telhados, destruir asfalto, redes de eletricidade, refinarias de petróleo e usinas, destruir tudo o que alguém com algum esmero ou ganância ou mesmo corrupção, construiu.

Destruir armas enormes do inimigo, destruir aviões, caças, sistemas de alarme antiaéreo, nomes que as pessoas aprendem a nomear e a sentir a estranha alegria quando uma delas é destruída e vira sucata. A guerra também é o ritual de celebrar a destruição de coisas caras e custosas. E o esforço de inventar novas coisas que ajudem a destruir ainda mais objetos do inimigo.

“Se você me pergunta: a guerra dá certo ou dá errado? Depende pra quem”, me explica pelo telefone, semanas depois, o professor Rodrigo Amaral, da Faculdade de Relações Internacionais da PUC-SP. “Ela dá certo para os atores do complexo industrial bélico, e os EUA são os maiores. Aliás, essa é uma grande linha argumentativa daqueles que falam das ‘endless wars‘, as oportunidades de guerras intermináveis e, com isso, potencializar o mercado da tecnologia bélica. Quando você olha pra Guerra ao Terror, isso fica explícito, a tecnologia de drones, por exemplo, é uma novidade que vai sendo desenvolvida ao longo da Guerra ao Terror.”

Nomes como F34, Mirage 2000-5, Fighters, caças F-16, Sukhoi-57, mísseis Kh-59, Kh-69, FAB-500M-62 vão entrando no vocabulário e nas conversas cotidianas das pessoas. As armas são fabricadas nos Estados Unidos, Reino Unido, França, Polônia, Alemanha, Rússia, Irã. Velhas armas soviéticas vão sendo remodeladas para novos usos e sites especializados vão se deliciando com as novidades – os ucranianos têm usado, por exemplo, um drone de nome Baba Yaga, lendária bruxa escandinava, para atacar alvos na linha de combate. Os russos, por sua vez, criaram a FAB-500, de 500 quilos, uma bomba soviética modificada pela adição de asas estabilizadoras e auxílio à navegação.

A guerra está mudando a economia da defesa.

Essa é uma guerra do século 20, lutada a pé por trincheiras e avanços por tropas formadas por gente pobre, gente cansada, gente obrigada a ir lutar, disputada rua a rua em cidades que estão nos mil quilômetros de linha de contato. Mas é também uma guerra do século 21, em que os drones, por exemplo, têm mudado o cenário – vê-se pela quantidade de anúncios de batalhões de drones que buscam voluntários nas ruas de Kiev.

No começo da nossa caminhada por Kiev, que se seguiu à conversa com o embaixador, demorei pra entender o que eram esses outdoors com imagens de soldados carregando armas, todas com um quê de propaganda de Hollywood. Depois, entendi: é preciso seduzir os jovens para virarem soldados.

Os outdoors são muitos e se viam por toda a cidade, naquele entardecer, quando fomos levados a uma caminhada turística pela guia Natasha, bastante animada, de olhos azuis bonitos e maquiagem carregada, um terninho e sapato azul com franjinhas. Fico feliz ao conhecer minha quase xará e cometo uma gafe: digo que meu nome tem origem russa, ao que ela responde, ríspida: “Russa não, eslava!”.

Passeamos pelos pontos mais conhecidos da cidade, cheia de pessoas aproveitando a tarde quente. Na praça diante do Ministério do Exterior, tanques enferrujados apreendidos dos russos viraram uma escultura permanente. Um cartaz de aluguel de patinete diz que espera o turista depois da vitória. Uma parede azul diante do cemitério virou um enorme painel de homenagem a milhares de soldados mortos desde 2014. Todos os seus rostos estão na parede. Um homem toca piano na rua, do outro lado do caminho peatonal.

Na capital, aos olhos da nossa guia, tudo é dividido entre antes e depois da guerra. “Nosso prefeito construiu a ponte porque era uma área popular e ninguém pensou que haveria guerra”, diz. O antigo Arco da Amizade, uma enorme estrutura de metal, foi construído para celebrar a irmandade entre os dois povos e hoje ostenta uma rachadura negra, intervenção feita por um artista ucraniano. “Aqui embaixo tinha uma estátua celebrando a amizade com os russos, mas, depois da invasão completa em 2022, as pessoas vieram aqui e destruíram.”

É uma das poucas ruínas que eu encontro. Depois da retirada dos russos da região de Kiev em abril de 2022, a avidez da reconstrução não deixou mais que um ou dois prédios danificados na cidade. A maior marca que ficou em Kiev é o entorno: saindo alguns quilômetros da cidade, vemos que terrenos baldios foram transformados em trincheiras ainda hoje funcionais, com estruturas quadradas de concreto escondidas debaixo de panos camuflados e grandes asteriscos de metal impedindo a entrada de carros ou tanques. Existem soldados em todas essas áreas aparentemente abandonadas. Além disso, as estradas são rigidamente controladas por checkpoints – para sairmos e entrarmos em Kiev, é preciso olhar nos olhos dos soldados e convencê-los de que não oferecemos perigo.

Mesmo assim, há algo que me inquieta. Sendo a guerra um exercício fútil de destruir coisas materiais, vejo muito menos degradação do que eu vejo diariamente na cidade de Carapicuíba, por exemplo, uma destruição causada pelo simples desenrolar da barbaridade do capitalismo cotidiano. Então, eu peço a Myroslava para vermos alguns prédios que foram bombardeados em Kiev. Ela diz para eu ficar tranquila, pois no dia seguinte iríamos à área que circunda Kiev, incluindo Bucha, onde os russos invadiram em 2022. “Bucha era um bairro próspero, um subúrbio abastado, e foi bastante afetado”, explica Myra.

E depois: “Eu sei que você quer ver coisas destruídas”, ela me diz, e a vergonha que eu sinto é indescritível. “Me dá muito orgulho ver como já reconstruíram rápido”, completa, sem perceber a monstruosidade que ela acaba de apontar em mim: o fascínio com a guerra, com os metais retorcidos e corpos despedaçados, os prédios destruídos e as imagens de filmes que vi quando crescia, e a inescapável incompreensão, até aquele momento, de que a guerra existe também no ar que ela respira. Tenho vergonha dessa curiosidade, desse fetiche da guerra, que é o que me fez aceitar participar desta viagem.

E entendo que os ucranianos, à medida que vão reconstruindo seu país com pressa, vão construindo também a história que querem que seja contada para satisfazer os olhos sedentos como os meus e os do meu leitor.

Falaremos disso na próxima semana.

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