O julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o porte de maconha para consumo próprio no Brasil foi retomado nesta quinta-feira, em sessão marcada por críticas à inoperância do Estado e bate-boca entre ministros.
O ministro Dias Toffoli devolveu o processo a julgamento, após pedido de vistas, e apresentou um alongado voto, abrindo uma nova linha de interpretação sobre o artigo 28 da Lei de Drogas no Brasil, que estabelece penas para "quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal".
Toffoli fez uma longa exposição resgatando os elementos históricos que levaram à proibição da maconha no Brasil, e os efeitos da criminalização do uso, como o encarceramento de usuários, em sua grande maioria negros e pobres. No entanto, defendeu a constitucionalidade do artigo, por entender que as penas estabelecidas não estão de acordo com o estabelecido pela Constituição.
Sobre o estabelecimento de uma quantidade para a diferenciação de usuário e traficante, o ministro defendeu que o STF dê "mais tempo" ao Legislativo e Executivo para que avaliem normas e políticas públicas para a execução do entendimento que será firmado pelo Judiciário.
"Nós temos que dar um tempo ao legislador e um tempo às políticas públicas do Poder Executivo que efetivem essa ausência de objetividade da norma, antes de nós aqui, termos que fixar", disse.
Ainda assim, Toffoli destacou que a criminalização do uso afasta o usuário dos sistemas de saúde e assistência social, e afirmou que a criminalização tem gerado "um custo social maior para a sociedade no Brasil", resultando no superencarceramento da população.
"Estou convicto que tratar o usuário como um tóxico delinquente não é a melhor política pública de um Estado social democrático de direito", afirmou. O ministro foi sexto a votar.
O julgamento foi suspenso e será retomado na próxima terça-feira (25), com os votos de Luiz Fux e Carmen Lúcia, respectivamente.
Em respostas a críticas do Legislativo sobre um suposto ativismo judicial, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, abriu a sessão destacando que o Tribunal considera o porte de maconha um ilícito, ainda que para consumo pessoal, de acordo com as regras definidas pelo Legislativo, cabendo ao Judiciário a definição natureza da ilicitude.
"Consumo de maconha, que é o caso concreto, continua a ser considerado um ato ilícito, porque esta é a vontade do legislador. O que nós estamos discutindo são duas questões: se esse deve ser tratado como um ato ilícito de natureza penal ou se deve ser tratado como um ato ilícito de natureza administrativa", afirmou.
"Ninguém está legalizando droga. Droga continua a ser um ato ilícito. Estamos discutindo a natureza da punição e estamos apenas fixando a quantidade que distingue porte para consumo pessoal de tráfico. O legislador que trata diferentemente porte e tráfico. O que nós estamos fazendo é definindo a quantidade que diferencia uma coisa da outra", asseverou.
Clima esquenta entre ministros
Durante suas colocações iniciais o ministro Barroso foi interrompido por André Mendonça, que acusou o Judiciário de usurpar competências do Legislativo, na linha das críticas que o STF vem sofrendo de alguns setores do Congresso.
"A grande verdade é que nós estamos passando por cima do legislador, caso essa votação prevaleça com a maioria que hoje está estabelecida. O legislador definiu que portar drogas é crime. Transformar isso em ilícito administrativo é ultrapassar a vontade do legislador. Nenhum país do mundo fez isso por decisão judicial", disse Mendonça.
"Bom, vossa excelência acaba de dizer a mesma coisa que eu disse, apenas com um tom um pouco mais panfletário. Estamos discutindo se é ato ilícito administrativo ou se é ato ilícito penal. Vossa excelência entende que é ato ilícito penal e tem todo o direito de achar, mas a minha explicação foi absolutamente correta do que está sendo decidido", respondeu Barroso.
O ministro Alexandre de Moraes saiu em defesa do presidente da Corte. "Todo mundo palpita e pouca gente conhece essas questões", disse Moraes.
"O que está havendo também é uma deturpação dos votos e da discussão no Supremo Tribunal Federa. É muito fácil deturpar as informações aqui trazidas e os votos proferidos, a fim de tentar jogar a sociedade contra o Poder Judiciário", criticou.
Como votaram os outros ministros
O tema começou a ser julgado pela Corte em 2015, a partir do caso de um homem condenado a cumprir dois meses de serviços comunitários após ser flagrado com 3 gramas de maconha em sua cela, no Centro de Detenção Provisória de Diadema.
Gilmar Mendes, relator do caso, defendeu que portar drogas para uso próprio deixe de ser crime. Já os ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin se posicionaram pela descriminalização do porte apenas para a maconha. Alexandre de Moraes e Rosa Weber também votaram a favor de alguma forma de descriminalização da posse de drogas somando cinco votos favoráveis.
Cristiano Zanin, André Mendonça e Nunes Marques votaram contra a descriminalização. O ministro Flávio Dino não votou, já que sua antecessora, Rosa Weber havia proferido o voto antes de sua aposentadoria.
Críticas à Anvisa
Em seu voto, o ministro Dias Toffoli teceu fortes críticas à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e acusou a instituição de não ter tido "coragem" para enfrentar o tema do uso de cannabidiol para fins terapêuticos.
"Estávamos a conversar sobre a questão da importação do canabidiol para o uso terapêutico, em que a Anvisa até hoje não teve a coragem de enfrentar adequadamente esse problema e dizer qual é o uso terapêutico permitido ou não permitido. Autoriza a importação, mas para qual uso terapêutico? É uma omissão do Estado, de uma agência reguladora importantíssima", declarou.
O Brasil de Fato entrou em contato com a Anvisa para comentar as declarações do ministro, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto para o posicionamento.