O presidente russo, Vladimir Putin, realizou no início da semana uma visita oficial à Mongólia. Como o país asiático é signatário do Tribunal Penal Internacional (TPI), órgão que emitiu um mandado de prisão contra Putin por supostos crimes de guerra relacionados ao conflito na Ucrânia, tecnicamente a Mongólia deveria ter executado a prisão do líder russo.
Ao invés disso, ao desembarcar no país, Putin foi recebido de forma calorosa com direito a uma guarda de honra e uma grande recepção na Praça Genghis Khan, no centro da capital, que ficou enfeitada com bandeiras dos dois países. A posição da Mongólia recebeu críticas da Ucrânia, mas não houve condenação explícita do Ocidente. Como resultado, a bem-sucedida viagem a um país signatário do TPI abriu uma lacuna na credibilidade do arbítrio do Tribunal em países terceiros e pode abrir um precendente para dar luz verde a outras viagens do presidente russo.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o vice-diretor do Instituto de História e Política da Universidade Estatal Pedagógica de Moscou, Vladimir Shapovalov, observou que a posição que a Mongólia assumiu foi uma “reação bastante adequada”, que reafirmou a sua independência e soberania na arena internacional.
Ao mesmo tempo, o cientista político destacou que “o TPI não pode ser encarado uma instância jurídica objetiva”. Segundo ele, a Corte é “um simulacro criado pelo mundo ocidental, pelo ocidente coletivo, para promoção e realização dos seus objetivos”.
Durante a reunião com o presidente da Mongólia, Ukhnaagiin Khürelsükh, Putin destacou o desenvolvimento das relações bilaterais entre os países, reforçando que “nos primeiros sete meses deste ano, o volume de negócios comercial aumentou mais de 21%”. “Além disso, os acordos comerciais entre os nossos dois países já são quase inteiramente feitos em moedas alternativas ao dólar e ao euro”, acrescentou.
A visita à Mongólia foi a primeira viagem de Putin a um país que reconhece a jurisdição do Tribunal Penal Internacional desde que o mandado de prisão foi emitido em março do ano passado. A acusação contra Putin diz respeito à suposta deportação e transferência ilegal de crianças da Ucrânia para territórios anexados pela Rússia durante a guerra.
Um mandado de prisão semelhante foi emitido para a comissária do presidente da Federação Russa para os Direitos da Criança, Maria Lvova-Belova. O motivo da acusação remete a maio de 2022, quando Putin assinou um decreto sobre um procedimento de simplificação para órfãos da Ucrânia obterem a cidadania russa.
Precedente para o G20 no Brasil?
A vista de Putin a um país signatário do TPI remete ao dilema do Brasil - que também é signatário do Estatuto de Roma - já que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já manifestou o desejo que o presidente russo participasse da cúpula do G20, que será realizado no Rio de Janeiro, em novembro.
Lula chegou a apresentar à Comissão de Direto Internacional da ONU um documento com arcabouço jurídico para sustentar a possibilidade da vinda de Putin, mas, ao mesmo tempo, o líder disse que o próprio presidente russo deve avaliar as consequências de sua visita.
O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, afirmou nesta semana que Putin ainda não tomou a decisão sobre o G20. “Nenhuma decisão foi tomada a esse respeito ainda. Nosso Sherpa continua a trabalhar ativamente com seus colegas. Estamos defendendo os nossos interesses lá, mas o presidente ainda não tomou nenhuma decisão”, disse Peskov.
Para o cientista político Vladimir Shapovalov, o caso da Mongólia “realmente cria um sério precedente e é claro que isso abre um campo para futuras visitas entre Estados” para o presidente russo.
No entanto, há um fator complicador para uma eventual presença de Putin no G20 que é a interferência e pressão de outros Estados durante o evento no Rio de Janeiro, considerando o G20 é composto em grande parte por todos os países que compõem o que a Rússia chama de “ocidente coletivo”. Ou seja, uma conferência multilateral com uma ampla presença de países que antagonizam com a Rússia é mais complexa para uma visita de Putin do que uma visita bilateral.
“No que diz respeito ao Brasil e outros países, a situação aqui é ambígua. Nós devemos considerar uma série de fatores, entender que o fornecimento de garantias de segurança incondicional para o presidente da Rússia é a máxima prioridade para o país. Se tais condições forem garantidas, a visita para este ou aquele país pode ter sentido. Se essas garantias não existirem, é melhor que a Rússia receba visitas de outros líderes”, diz Shapovalov.
Neste sentido, os líderes de Brasil e Rússia já tem uma data marcada para um encontro em solo russo junto com outros líderes do Sul Global. A Cúpula do Brics, que acontece em Kazan, de 22 a 24 de outubro, tem a presença confirmada do presidente Lula. Este evento pode dar os próximos sinais sobre as chances de Putin visitar o Brasil.
Presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o presidente da Mongólia, Ukhnaagiin Khurelsukh, participam de uma cerimônia oficial de boas-vindas em Ulaanbaatar, em 3 de setembro de 2024. / Byambasuren Byamba-Ochir/AFP
'Mongólia é um país soberano'
Para o cientista político Vladiimr Shapovalov, a posição da Mongólia de ignorar o Tribunal Internacional está relacionada com a posição independente e soberana do país no mundo, mas ao mesmo tempo revela uma inclinação para o fortalecimento das relações com a Rússia e a China ao invés do Ocidente.
“Em primeiro lugar, é preciso destacar que a Mongólia é um país soberano, neutro, isso é importante. Que não adere a certas alianças militares, blocos político-militares, e que busca promover uma política de múltiplos vetores. Mas nós vemos que a atual visita comprova que o curso de fortalecimento das relações com a Rússia está claramente se tornando predominante. É preciso observar que aqui estão muito bem definidas as prioridades. Para a Mongólia, a Rússia, junto com a China, é um dos parceiros-chave”, analisa.
No que diz respeito à posição da Mongólia em relação à guerra da Ucrânia, Shapovalov aponta que o país asiático “adota a mesma posição que a maioria dos países da 'maioria global'”. “Ou seja, a Mongólia se distancia do apoio a esse ou àquele país, não participa das sanções ocidentais em nenhum grau. E a Rússia valoriza essa posição e demonstra gratidão à parte mongol pela coragem e pela prontidão de seguir os interesses nacionais e não os interesses do Ocidente”, acrescenta.
Autoridades da Mongólia justificaram a recusa em cumprir o mandado de prisão do tribunal internacional alegando que o país possui uma dependência energética, importando 95% dos seus produtos petrolíferos e mais de 20% da sua eletricidade dos seus vizinhos mais próximos.
De acordo com fontes do governo, citadas pela revista Politico, esses suprimentos são essenciais para a sobrevivência do país. Além disso, a publicação destacou o histórico de neutralidade que o país adota em suas relações diplomáticas. “A Mongólia sempre manteve uma política de neutralidade em todas as suas relações diplomáticas”, diz a fonte.
Entre Rússia e China
A recusa da Mongólia não foi uma surpresa, uma vez que o país nunca condenou a Rússia pela guerra da Ucrânia e possui fortes laços históricos com Moscou. Durante o período soviético, o país asiático se manteve como uma espécie de “Estado satélite” do bloco socialista.
Além disso, a União Soviética lutou ao lado da Mongólia contra os japoneses na batalha de Khalkhin Gol, em 1939, luta marcante na história da defesa da integridade territorial da Mongólia. Esta batalha, inclusive, teve o aniversário de 85 anos celebrado durante a visita de Putin. E durante a Segunda Guerra Mundial, as tropas mongóis também ofereceram ao exército soviético na luga contra o nazismo.
Vladimir Shapovalov aponta que, no períodos pós-soviético, diferentemente, por exemplo, da Coreia do Norte, a Mongólia “começou a adotar uma política em diferentes vetores”, na qual participaram não só a Rússia e a China, mas também os EUA e os países da União Europeia. Segundo ele, as relações do país asiático se desenvolveram de forma bastante ativa em várias frentes.
“A Mongólia não é o tipo de país que segue a Rússia, ou a China, mas é um país que justamente por se encontrar entre a Rússia e a China, se esforçou em diversificar os vetores da sua movimentação e, em determinado momento, chegou a apostar nos EUA, no fortalecimento da amizade com os EUA", afirma.
O país asiático, ao nunca deixar de manter boas relações com o Ocidente, sempre foi reconhecido por respeitar as normas do sistema internacional e as suas principais instituições. A visita de Putin, no entanto, mostra que a Mongólia está disposta a colocar a autoridade do Tribunal Penal Internacional em xeque, priorizando os seus interesses nacionais.
“Tudo isso mostra que a Mongólia vem adotando o curso de fortalecimento da interação com a Rússia de forma muito ativa. Aliás, uma interação trilateral, junto com a Rússia e com a China. Não acho que isso signifique que a Mongólia agora vai abandonar o seu vetor ocidental, se recusando a se relacionar com os EUA. Mas isso significa que a Mongólia adota passos mais ativos em direção à Rússia e à China, em direção aos países que designou-se chamar de 'maioria global', em oposição ao Ocidente”, argumenta.
“A decisão adotada pela Mongólia não é só uma decisão que abre precedentes e descredibiliza o TPI, como uma instância que tem a pretensão de ter agência, mas é uma decisão que fixa de maneira muito clara as significativas mudanças que hoje ocorrem no mundo em escala global”, acrescentou o cientista político.
Reação dos EUA
O analista observa também que a reação dos EUA “foi muito contida” e não houve uma condenação explícita por parte da Casa Branca em relação à recepção da Mongólia ao presidente russo.
O porta-voz do Departamento de Estado, Matthew Miller , afirmou que os Estados Unidos “compreendem a difícil situação em que se encontra a Mongólia, mas, no entanto, lembram ao país a importância de cumprir as suas obrigações internacionais”.
“Compreendemos a posição em que a Mongólia se encontra, imprensada entre dois vizinhos muito maiores, mas pensamos que é importante que continuem a apoiar o Estado de direito em todo o mundo”, declarou Miller, acrescentando que os EUA continuarão apoiando a Mongólia.
Já a reação da Ucrânia foi de uma crítica mais severa. O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia, Georgy Tikhy, considerou a recusa das autoridades mongóis de executar o mandado do Tribunal Penal Internacional “um duro golpe para a justiça” e ameaçou a Mongólia com retaliações.
O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, reagiu à fala do diplomata ucraniano e classificou como “rudes as declarações de autoridades ucranianas”. O chanceler afirmou que “o tema do TPI está sendo artificialmente exagerado”, acrescentando que o Ocidente recorre a padrões duplos neste âmbito.
Lavrov citou como exemplo a forma como os juízes do TPI foram criticados apenas por “sugerirem” colocar a liderança de Israel na lista de condenados pelo tribunal. O ministro lembrou também como os Estados Unidos ameaçaram o TPI com sanções por tentar investigar os bombardeamentos estadunidenses no Afeganistão.
Para o cientista político Vladimir Shapovalov, este caso revela que as organizações internacionais são amplamente instrumentalizadas pelo interesse Ocidente e "uma forma de instrumento de contenção, expansão, pressão e influência do Ocidente no mundo”. “E é assim que aconteceu, pelo menos nas últimas décadas, sobretudo após a dissolução da União Soviética. Agora nós vemos que o papel dessas organizações, sua influência e sua autoridade, está significativamente diminuindo”, completa.